[Opinião] Hospital: cegueira ideológica ou simples lógica?

Ana Isabel Silva CRÓNICAS/OPINIÃO

Recentemente, o primeiro-Ministro, Luís Montenegro, anunciou que a Ministra da Saúde está a trabalhar com várias Misericórdias na transferência de hospitais para a sua gestão. Entre os hospitais mencionados estão o de Santo Tirso e o de São João da Madeira. Segundo Montenegro, esta medida visa “maior eficiência e eficácia na resposta às comunidades locais”.

É, contudo, fundamental lembrar que esta ideia não é nova. Trata-se de um projeto antigo da coligação PAF, liderada por Pedro Passos Coelho, que em 2015 anunciava a transferência de hospitais do SNS para as Misericórdias. O Hospital de Santo Tirso era um dos incluídos, com a transição prevista para 1 de janeiro de 2016. No entanto, a queda do governo e a criação da “geringonça” reverteram o projeto. Agora, a partir de 1 de janeiro de 2025, a transferência será reativada.

Em 2016, a Ordem dos Médicos e os sindicatos dos médicos da região Norte alertaram para os riscos desta transferência, incluindo a possível diminuição de várias especialidades. Se na altura já existiam reservas, qual é a situação atual?

Ninguém nega que o Hospital de Santo Tirso necessita de mudanças urgentes: melhorias no funcionamento das urgências, obras dos espaços físicos, aumento das valências e reforço dos transportes de doentes não urgentes. Este desinvestimento prolongado tem deixado, compreensivelmente, os tirsenses com a sensação de abandono, mas há soluções concretas para reverter a situação.

Para atrair e reter profissionais de saúde, é essencial ter condições mais atrativas que não se resumem ao salário. A execução mais célere das obras necessárias também seria um passo crucial. Mas em vez de apostar numa recuperação que valorize o SNS, a transferência para a gestão da Misericórdia parece desvalorizar o papel do SNS e transferir encargos para uma entidade que dificilmente garantirá a evolução necessária do hospital. Aliás, a estratégia tem sido exatamente a oposta: diminuir o investimento público para levar a uma degradação deste serviço e com isto justificar uma transferência na gestão do mesmo. Pergunto: será que a Misericórdia conseguirá oferecer as valências que a comunidade necessita? É relevante lembrar que nos últimos anos já foram investidos mais de 4 milhões de euros no hospital, e ainda há muito por fazer.

Este tipo de medida levanta questões cruciais. Em 2016, quando a decisão de transferir o Hospital de Santo Tirso para a Misericórdia foi revertida, a instituição exigiu ao Estado 450 mil euros, alegando investimentos feitos durante a transição. Mais ainda, só em 2015 o Estado já tinha transferido mais de 81 milhões de euros para as Misericórdias por serviços de saúde.

Se os investimentos e despesas continuam a ser públicos, para que serve esta transferência? Por que razão o escrutínio e a administração não devem ser públicos também? Não se trata de “cegueira ideológica”, como alguns argumentam, mas de simples lógica.

Além disso, é importante lembrar que a saúde pública tem de ser administrada por entidades públicas para garantir um escrutínio público. Transferir a gestão para uma entidade privada como a Misericórdia representa uma desresponsabilização do Estado.

Vale a pena recordar que o Hospital de Santo Tirso já pertenceu à Misericórdia, mas foi nacionalizado após o 25 de abril, sendo este hospital uma conquista de abril. Embora a mudança e a evolução sejam necessárias, há princípios que não devem ser comprometidos. A saúde deve ser de todos, para todos, e sujeita ao escrutínio de todos. A privatização encoberta não é a solução.

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