[Memória] A Barca do Nuno

CRÓNICAS/OPINIÃO Diretor

As três paróquias que hoje fazem parte da Vila das Aves dependeram, administrativamente, de Barcelos até 1835, data em foi fundado o concelho de Famalicão, a que passaram a pertencer. Décadas mais tarde e depois de extintas e integradas as duas freguesias mais pequenas, S. Miguel das Aves juntou-se ao concelho de Santo Tirso, que tem praticamente a mesma idade que o de Famalicão. A mudança foi desejada e teve que ver com a maior facilidade de acesso à sede do concelho depois da abertura, por volta de 1860, duma estrada moderna (é hoje a Estrada Nacional 105) e do caminho-de-ferro em 1883.

É certo que havia caminhos e a ponte de S. Tomé (ou do Espírito Santo, ou ponte velha), sobre o rio Vizela é garantia disso. Mas os movimentos da população seriam mais intensos no sentido do norte, para Famalicão e de Barcelos, atravessando o rio Ave. Mesmo para deslocações para sul, a travessia permitia aceder à Estrada Real, na margem direita do Ave, por Delães e Bairro, em direção à Ponte de Caniços. A designação de estrada real ainda hoje existe e a rainha Dª. Maria II passou ali em 1852, na sua viagem de Guimarães para Santo Tirso. E só não foi à Fábrica de Negrelos porque o caminho de Caniços a Negrelos não tinha condições para a carruagem real, tendo sua majestade enviado o consorte, a cavalo, a visitar a fábrica respondendo ao convite.

Como não havia ponte no rio Ave, a travessia fazia-se por uma barca de passagem. Em 1758 o pároco de Bairro referiu, na resposta ao inquérito nacional que o Marquês de Pombal mandou fazer, que «no distrito desta freguesia tem somente uma barca que serve para passar gente e toda a casta de animais». E o de Sanfins (freguesia extinta que foi integrada em Bairro) refere que no rio Ave há “umas poucas de barcas de passagem como são a barca da Trofa, a de Santo Tirso, que é dos religiosos beneditinos, a do Nuno que é dum Manuel Francisco da freguesia de S. Miguel das Aves muito antiga e lhe pagam por avença ou sem ela os que querem passar».

Não se sabe porque lhe chamavam a Barca do Nuno. Talvez fosse o nome do primeiro barqueiro que se estabeleceu no lugar.

“Como não havia ponte no rio Ave, a travessia fazia-se por uma barca de passagem. Em 1758, o pároco de Bairro referiu, na resposta ao inquérito que o Marquês de Pombal mandou fazer, que “no distrito desta freguesia tem somente uma barca que serve para passar gente e toda a casta de animais”

O lugar ainda hoje se chama da Barca e para lá convergiam os principais caminhos de cada uma das paróquias. Há topónimos que falam por si: o caminho do Carral vinha de Sobrado e o da Carreira, que ligava a Romão e passando por Paredes e Freixieiro. De S. Miguel o caminho teria possivelmente um traçado idêntico à estrada atual, mas as referências existentes dele dizem que era “inviável”. Pequenas partes destes caminhos antigos ainda mantêm o aspeto original e seria interessante que pudessem usar-se, pelo menos, na parte mais próxima do rio.

O aspeto do rio já não é o que era, pois a construção da barragem do Amieiro Galego em 1908 elevou o nível da água na zona onde funcionava a barca de passagem, onde haveria um açude e um moinho. Estranho é que, na outra margem, não sejam visíveis vestígios do caminho de acesso à barca, mas talvez seja preciso explorar um pouco.

A barca e a barqueira do Ave fazem parte da trama de um romance que Arnaldo Gama publicou em 1852 e que é fácil encontrar nos alfarrabistas: “Só as mulheres sabem amar”. Uma enjeitada, filha adotiva da barqueira e uns jovens senhores que circulam entre Sanfins e S. Miguel das Aves passando o rio na Barca estão no centro do enredo. Como é sabido, a família de Arnaldo Gama possuía uma quinta em Bom Nome, a Quinta do Outeiro, onde habitualmente passava férias e no romance descreve as paisagens e as gentes da região como o conhecimento de quem passou muito tempo por cá. Vejam só: “ dirigi-me pelo tortuoso caminho do monte em direção à barca. Um alto penedo, que se levantava à minha direita, fez-me por fim parar. Era detrás dele que aos dias calmosos do estio, quando o sol mais apertava, eu e os meus companheiros de infância nos acoitávamos, entretanto que Ana, a nossa boa barqueira, advertida por um assobio particular que lhe dávamos com um apito, saía da sua cabana, desprendia a barca e atravessava o rio para nos passar para o outro lado. Isto acontecia sempre, quando, depois de almoçarmos com a família de Luís de Mendonça, vínhamos jantar ou em minha casa ou em casa de Fernando”.

Como seria a barca, que passava pessoas, animais e, talvez, carros de bois e carruagens de transporte de pessoas? Provavelmente haveria um modelo tradicional de barca, visto que era um processo de travessia existente em vários locais. No rio Ave já vimos atrás referidas mais duas barcas: a de Santo Tirso e a da Trofa. No rio Cávado, perto de Esposende, é famosa a Barca do Lago, nome de lugar e nome de barca da qual, em 2017, o antigo atleta olímpico de canoagem Belmiro Penetra construiu e pôs em funcionamento uma réplica. Ele próprio assumiu o ofício de barqueiro de ocasião e proporciona a travessia do rio aos turistas e aos peregrinos que caminham na variante do caminho português de S. Tiago de Compostela. Por ela será possível imaginar a forma que poderia ter a nossa barca.

Quando um cónego da Sé de Lamego, nascido na Casa da Barca do Nuno, quis ali edificar uma capela, para sua conveniência, usou a barca como argumento: “ a qual capela interessa muito aos barqueiros que devem estar prontos para passarem na dita barca os passageiros e de lhes ser facilíssimo essa prontidão tendo perto a comodidade de ouvir missa”. Convém aqui esclarecer que as constituições diocesanas determinavam que nos “dias de guarda” (domingos e dias santos), “as barcas de passagem não passassem ninguém sem causa justa ante missa, sob pena de cem reis, salvo se for para a poder ouvir”.

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