[Crónica] Lugares mágicos com penedos

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

Certamente que boa parte dos leitores do Entre Margens, tal como eu, cresceram numa freguesia do Vale do Ave. Como é óbvio, estas circunscrições administrativas, surgidas de comunidades e paróquias bastante antigas – muitas delas de origem pré-romana – possuem uma delimitação territorial constituída por particularidades paisagísticas que preenchem a memória coletiva dos seus habitantes. Falo dos elementos da paisagem que estendem pelos montes e vales da bacia hidrográfica do Ave: casas, fábricas, caminhos, quelhas, ruas, cruzamentos, rotundas, penedos, marcos, rios, ribeiros, represas, lameiros, campos, bouças e montes, entre muitos outros. No fundo, as características destes locais e imóveis constroem os nossos “mapas mentais” que, inconscientemente, nos ajudam a conceptualizar a toponímia, os lugares, as aldeias, as vilas e até as cidades.

Numa sociedade cada vez mais alheada da cultura local, assim como da agricultura e do contacto com a natureza, muitos destes elementos estão a deixar de ser uma referência. Alguns deixaram de ser rendáveis e/ou funcionais e encontram-se ao abandono. Nos vales, são disso exemplo, as construções abandonadas de muitas quintas: as casas, eiras, pombais, vacarias, moinhos, azenhas e respetivos sistemas de rega, como os engenhos, as presas, os tanques e as levadas, entre outros. Por outro lado, nos terrenos mais altos, abandonaram-se muitas bouças, deixando-as “a monte”, cada vez mais regradas pela invasão de eucaliptos e acácias, sem qualquer manutenção. Aí impera o lucro do saque e da industrialização do espaço florestal. Na atualidade, qualquer máquina entra e esventra uma montanha. Vence as silvas, os tojos e as giestas e recolhe toda a madeira que houver. Passados sete a dez anos de abandono, repete-se o processo.      

Os penedos dos vales, arroteados, quase desapareceram, para dar lugar às agras e fornecer pedra à construção. Aí, alguns serviram de eiras comunitárias, como o do Alto das Lajes, em Sequeirô (hoje desaparecido), ou os dos lugares de Chão e Casais, em Monte Córdova.

No alto dos montes, permanecem, quase esquecidos, muitos dos únicos afloramentos rochosos que ainda estão mais ou menos intactos. Restaram, em especial, os dos lugares mais altos, onde a voracidade das pedreiras não chegou. Ao contrário de outros tempos, em que serviam de base para as vistas mais admiráveis das aldeias, hoje, as suas formas singulares estão, cada vez mais, ocultadas pelas ramagens dos eucaliptos, que os engolem. Muitos, devido às formas que possuem, têm nomes e crenças específicos e, não raras vezes, foram objeto de sacralização cristã. Alguns são mágicos, na verdadeira aceção do termo, lugares de crenças e lendas, devido às suas configurações ou por estarem em sítios com vestígios arqueológicos.

Na Vila das Aves, no Monte de Sobrado, destacavam-se o Penedo das Cabeças das Duas Meninas e o Penedo da Raposa. Não foram destruídos. Contudo, foram retirados para a Fonte do Monte, face à estrada para Riba de Ave, onde, em nossa opinião sincera, estão completamente descontextualizados, destituídos da sua interpretação natural. Em Sequeirô, no lugar de Monte dos Saltos, fica o Penedo da Moura. Situado numa encosta sobranceira ao Ave, contém duas lapinhas, usadas como abrigo, provavelmente na Pré-História e na antiga vila romana desse monte. Era lugar de grandes crenças, onde, com velas, rezas e leituras invertidas do livro de São Cipriano, se acreditava que se poderia desencantar uma moura de cabelos loiros e um tesouro.  Certamente que o Penedo do Ouro, no lugar de Santa Cruz, em Burgães, junto a um sítio de ocupação romana, ou o Penedo da Moura do lugar das Bocas, em São Martinho do Campo (que possui uma inscrição romana) foram objeto de crenças idênticas. Em São Miguel do Couto, um pouco acima da igreja paroquial, no Penedo da Condessa, acreditava-se que Santa Ilduara aí teve um encontro com o Arcanjo Miguel. Na Citânia de Sanfins, no Penedo Rebolão, julgava-se que um lavrador de Negrelos quebrou o encanto da moura, ao levar o dito penedo num carro de bois até à ponte de Negrelos, deitando-o ao Vizela.

Aqui perto, em Requião, Famalicão, junto à capela de São João, encontra-se a Pedra Leital, um penedo com a forma de dois seios, onde as mulheres que não possuíam leite, iam mamar e depois dar três voltas ao mesmo na esperança de serem lactantes. O antropólogo Álvaro Campelo[1], refere-nos que, segundo a tradição oral, em Seara, Ponte do Lima, encontra-se o Penedo da Janelinha, onde os casais inférteis acorriam para nele consumarem o ato sexual, na esperança de conceber um filho. Casos idênticos, referidos pelo mesmo autor, eram realizados num penedo próximo da Capela de Santa Justa, em São Pedro de Arcos, Ponte de Lima. Aí, segundo a tradição oral, depois do casal pernoitar no local e consumar o ato, de manhã, a mulher, nua, sentava‑se sobre a pedra e rezava para engravidar. O mesmo acontecia num penedo da Serra de São Domingos, em Lamego.

Muitos mais casos do país poderíamos relatar e que aqui nos são impossíveis de expor, como os “penedos de casamentos” ou as diversas lendas e/ou aparições marianas em lapinhas, agora sacralizadas, como as de Sernancelhe, Guimarães ou Lousada. Fica, no entanto, uma reflexão sobre o que fazemos a este património cultural excecional, tanto geológico, como imaterial, maltratado e esquecido que, sem qualquer salvaguarda, ainda resiste bem perto de nós. Destruir ou alterar as características destas rochas, quando muito, é hipotecar um futuro mais cultural, científico e ecológico dos nossos filhos e netos.


[1] “Penedos na Paisagem. A Oralidade e a Força da Pedra Sagrada”, in VIEIRA, Alexandra (Coord.) “Arqueologia e Tradição Oral”. S/l: CITCEM – UP, novembro de 2023. Pp 95-124.  

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

ten + eighteen =