[Opinião] Ciladas em Família

CRÓNICAS/OPINIÃO João Ferreira

Dia 8 de abril, ocorreu um episódio inédito nos media. A transmissão em direto da apresentação de um livro pelos canais de informação das generalistas (RTP3, SIC Notícias, CNN Portugal). Infelizmente, não foi inaugurado um espaço de programação destinado à promoção de hábitos de leitura. Assim sucedeu, pois coube a Passos Coelho a apresentação de uma coletânea de narrativas ficcionadas, desde a “sovietização do ensino” imposta às crianças a supostos ataques à “família tradicional”. A melancolia de uma moralidade caduca, que se insurge contra a defesa do direito de cada um desenvolver a sua personalidade e identidade, a viver uma sexualidade plena, feliz e assumida, em conjunto com outros, foi objeto de críticas prolixas nos dias que se seguiram, pelo que me abstenho a reiterá-las. O que tem passado ao lado da análise é a aliança entre neoliberalismo e neoconservadorismo, convergente no cadastro político das governações de direita, e o papel central do ressurgimento do valor da “família tradicional”.

Diante da insegurança provocada por crises recorrentes no capitalismo, pela privatização das funções sociais do Estado, a precarização das relações laborais, a direita invoca a necessidade de proteger “a família”, abstratamente considerada. Não se trata da proteção assente numa ação comum e solidária, redistribuindo-se a riqueza e o bem-estar material na saúde, educação, habitação, serviços básicos, emprego. O objetivo não passa por combater a precariedade e a desregulação dos horários, nem por reduzir o tempo de trabalho ou limitar os horários noturnos e por turnos das famílias esmagadas por longos dias de trabalho e por horas perdidas, para vir e ir desse trabalho, sem disporem do tempo necessário para viver em conjunto. Nem por reforçar os direitos de maternidade ou parentalidade, assegurando o tempo necessário aos pais para acompanhar os filhos no seu crescimento. E muito menos pela criação de uma rede pública de creches que garanta respostas seguras e gratuitas aos casais que gostariam de ter mais filhos do que efetivamente têm. Ou ainda pela criação de uma rede pública de equipamentos e serviços de apoio aos idosos, de modo a que trabalhadores não sejam forçados a abandonar o trabalho para se dedicarem em exclusivo aos cuidados dos pais.

A direita enche a boca para falar da “família”, contudo, encabeça as fileiras que se opõem aos avanços nas matérias essenciais acima referidas. Inversamente, apelam ao desmantelamento das funções sociais do Estado, abraçando a crença de que caberá à “família” assegurar o desenvolvimento e a sobrevivência dos seus membros. Ou seja, quaisquer direitos sociais como, por exemplo, o ensino, o sistema de segurança social, o sistema de pensões de velhice e invalidez, o sistema de creches e jardins-de-infância, o sistema de apoio à terceira idade, passam a ser traduzidas como questões individuais a serem solucionadas por mecanismos do mercado e/ou pelas famílias. Considerada a crescente desigualdade social e os milhões de trabalhadores que auferem baixos salários, e que constituem as famílias, podemos adivinhar a quem irá calhar a fava. Não será, certamente, coberta pelo “mercado”. Caberá às famílias, especialmente às mulheres, a sobrecarga de tarefas domésticas e cuidados familiares. Daí que a direita se mobilize para perseguir os seus objetivos por meio da moralidade, quer ao retomar a defesa do papel da mulher como “cuidadora”, quer ao instrumentalizar o valor da “família tradicional” para alcançar a privatização da proteção social. Caberá às classes sociais e às forças políticas comprometidas com a ampliação dos direitos coletivos, travar esse caminho.

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