[Crónica] O mal é mesmo banal

CRÓNICAS/OPINIÃO Hugo Rajão

Ao processo de mover, desenvolver, transformar ou condicionar determinado objeto atribuímos o verbo “manipular”. Vem de mão. Assume-se a pouca ou nenhuma eficiência dos pés nestes fenómenos. Servem para nos movimentarmos, quando muito para pontapear objetos, mas dificilmente para controlá-los, sob pena nos atrapalharmos com eles. Por alguma razão existe “manipular” e não “pedipular”. Não é exclusivo do português, em inglês ocorre praticamente o mesmo – handle (hand = mão).

Assim sendo, controlar um objeto com os pés terá tanto de absurdo quanto de mágico. É talvez essa absurdidade mágica que tornou o futebol a modalidade desportiva mais popular do mundo. Isso mesmo. Quem diria? Um desporto que consiste em controlar uma bola com os pés, e não com as mãos. Se fosse um piano, acharíamos uma loucura.

Se a associação entre os pés e o controlo de uma bola é absurdamente mágico. Associar o Mundial de futebol, o expoente máximo da modalidade, ao que tem acontecido no Qatar, país organizador da edição de 2022, configura outro tipo de absurdo. Este já não mágico, mas simplesmente intolerável.

À festa do futebol que tanto desejamos ver, vem atrelado o desrespeito pelos direitos humanos. O desrespeito pelas mulheres, pela comunidade LGBTQI+, pelos trabalhadores que pagaram com a vida na construção dos estádios e das infraestruturas e pelos que sobreviveram sob alçada de um regime laboral neoesclavagista.

“Associar o mundial de futebol ao quem acontecido no Qatar, configura outro tipo de absurdo. Este já não é mágico, mas simplesmente intolerável”

Devemos boicotar o Mundial? Mas quem? Podemos deixar de ver os jogos, mas não há nenhuma entidade política que corporize em termos coletivos as decisões dos “consumidores” de futebol, de modo a ter impacto significativo.

Contudo, as Federações e os agentes desportivos (jogadores e treinadores) têm efetivamente poder junto da FIFA. Mas estes até agora pouco ou nada disseram. Não falo das Federações pequenas, mas daquelas com mais poder. Não falo de treinadores e jogadores de pouco estatuto, mas dos consolidados no topo. Ou seja, daqueles cuja voz impacte mais no Mundial do que nas suas próprias carreiras.

Destes, no entanto, ouvimos pouco mais do que silêncio. O Cristiano Ronaldo, na célebre entrevista do momento, afirmou que era antes, aquando da atribuição da realização do Mundial ao Catar, que se devia ter falado e não agora.  No entanto, em nenhum momento, antes ou depois, o mesmo se pronunciou. O mesmo é válido para quase todos.

O intolerável não depende só dos intolerantes. Só é possível devido à conveniência acrítica dos que afirmam “estou apenas a fazer o meu trabalho”. O mal é mesmo banal!

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