Sebo nas canelas

Adélio Castro CRÓNICAS/OPINIÃO

Crónica publicada no Entre Margens de 23-12-2021

Uma colorida maralha de ferrenhos devotos de um singular modo de celebrar a vida saltitavam aos pés da famosa anémona rendada de Matosinhos, sacudindo o sono, o frio e o nervoso miudinho. Saltitando, também, sorri ao olhar para aquela gente que, seguramente, devia uma porrada de horas ao psiquiatra. Levantam-se aos fins-de-semana às cinco da matina, e faça sol, chuva, calor ou frio, lá vão correr três ou quatro horas seguidas e, no fim, derreados, doridos, suados, cansados, transpirados e mais malcheirosos que uma doninha, não se lhes consegue arrancar aquele ar de seráfica felicidade de quem finalmente conseguiu a paz no mundo. Juram, a pés juntos, que melhor que correr só mesmo descansar depois de correr. Não importa se o objetivo é chegar ao fim, mais ou menos vivo, ou se é comer de cebolada o melhor tempo deste mundo e do outro. Importa ainda menos se se é velho, novo, ou assim-assim, ou se se é magro, gordo, alto, ou baixo, ou se se é muito, pouco, ou nada rápido. Se gosta de correr como um danado atrás do seu melhor é, por inerência e direito próprio, membro desta tresloucada família. 
Mas, foi sol de pouca dura, serpentear pelos cantos e recantos da terra do senhor de Matosinhos, de Leça e do Porto, adoçou-me a alma. Foi bonito ver, ao longo de todo o percurso uma imensidão de gente a aplaudir, a incentivar e a gritar o nome dos atletas. Soube pela vida, ver estas cidades sem o habitual enquadramento das janelas do carro, correr pela ponte móvel, pela marginal de Leça, voltar a Matosinhos mesmo à hora de saborear os cheiros a peixe grelhado, ver o Douro a dar-se tranquilamente ao mar e dar uma catrapiscadela às suas seis beldades, a Arrábida, a D. Luís, a do Infante, a D. Maria Pia, a de S. João e a do Freixo.

Já no regresso, aquela elegantíssima embarcação que rasava, longilínea, as águas cor de prata velha coriscadas, aqui e ali, por uns outonais raios de sol, ombreou-me, fraterna, ao longo de todo aquele infernal estirão do Freixo até à Foz. Em duas solenes alas, os remos pontilhavam, em perfeita sincronia, a sua esteira, salpicando, a cada remada, efémeros pontos de exclamação. Movendo-se maquinalmente uma à frente da outra, as pernas lá iam fazendo caminho e eu, absorto, ia haurindo este deleitoso postal ilustrado do Douro, efabulando que, naquela esplendorosa manhã, aquele belíssimo “Double skiff” se tinha feito à água, com o único propósito de arrimar este pândego. Mas a verdade, é que o arrimo veio de bicicleta com os amigos do peito que se levantaram de madrugada e gastaram uma preciosa manhã de domingo para nos acompanharem, ajudarem, espicaçarem e sofrerem connosco.  
A partir dos 35, com a Foz à distância de um brado, os quilómetros agigantaram-se intermináveis e mais doridos que um desgosto de amor. Pouco depois, sem aviso, a derradeira centelha de energia morreu e mais pesado que um pecado mortal o cansaço explodiu, implacável. Completamente esvaído, não me sobrava nem força para gritar por socorro, quanto mais para correr os poucos de quilómetros que faltavam. Tinha acabado de me espetar no famoso “muro”, o mais negro pesadelo de qualquer atleta. Tentando perceber como é que amaluquei ao ponto de, com esta idade, andar por aí armado em carapau de corrida, percebi, assustado, que ainda era muito mais grave do que eu pensava quando entredentes me ouvi rezingar: “deixa-te de fitas ó Fidipedes, que Atenas é já ali”. Desliguei-me do mundo, do cheiro a maresia, da pérgula com vista para o mar, daquela bela manhã de sol, daquele fino na mesa da esplanada, cerrei os dentes e arrebanhando tudo o que era e o que tinha, empurrei um passo e a seguir outro e mais outro e fazendo das pernas coração, lá me fui arrastando. Dei-me conta que a verdadeira maratona começou ali e que treino nenhum me fez vislumbrar sequer uma longínqua sombra deste “momento”. O Paulo Freitas, um dos amigos que gastou aquela amanhã a apoiar-nos, resgatou-me daquele transe zombie e, não tenho dúvidas, que foi este precioso “abraço” que me deu o gás suficiente para me manter em movimento. 

“Aprendi que na maratona tal como na vida, quando parece que toda a esperança se apaga, só temos de cerrar os dentes e empurrar um passo a seguir ao outro e, quase sempre, a vida lá acaba por pegar novamente de empurrão. 

Adélio Castro

Dando já as costas ao Castelo do Queijo e com a meta à vista, comecei a escalar aquilo que me pareceu os Himalaias, mas a que chamavam Avenida da Boavista, fazendo votos que o engraçadinho que se lembrou de acabar ali a prova, fosse obrigado a subir a Pinguela às arrecuas sete vezes por dia, durante pelo menos setenta dias. 
Pouco depois, ao som dos gritos e incentivos da família e amigos, cortei a meta, varrendo-me uma avassaladora e indiscritível sensação de plenitude, que só a certeza de uma entrega total abençoa. 
Com sessenta fevereiros às costas, tinha feito a minha primeira maratona e corrido os 42 quilómetros e 195 metros da mais bonita maratona do mundo, e aprendi que na maratona tal como na vida, quando parece que toda a esperança se apaga, só temos de cerrar os dentes e empurrar um passo a seguir ao outro e, quase sempre, a vida lá acaba por pegar novamente de empurrão. Acho que o valente do Fidipedes inventou esta prova mítica para não nos deixar esquecer, que o impossível será sempre um conceito por definir.

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