[Crónica] O melhor de mim

Adélio Castro CRÓNICAS/OPINIÃO

Com uma cadência implacável, o ponteiro avançava imperturbável multiplicando angústias a cada novo segundo. Mais pesado que o martelo de Thor, cada um destes movimentos esmagava-me, com um renovado turbilhão de presságios, mais sombrios do que a alma do mafarrico. Em ânsias, cirandei vezes sem conta para trás e para a frente, naquele corredor dos suplícios, e outras tantas me sentei naquele banco do desassossego, a olhar, sem ver, o ponteiro dos segundos do grande relógio redondo, de aros cromados, que maculava aquela imensa parede pintada de um branco cru, frio e assético.

Onde raios tinha a cabeça quando desencantei coragem e suficiente insânia para repetir este desapiedado calvário. Que tormento maior me poderia ser infligido do que me condenar a ficar ali alapado, transido de medo e de angústia, minúsculo, impotente e irrelevante, quando naquele preciso momento, algures por trás daquelas paredes, por obra e graça do maior dos milagres, uma abençoada alquimia acendia, com o melhor de mim e, principalmente, com o melhor da mulher da minha vida, as vidas de duas frágeis princesas, dando finalmente luz às minhas mais almejadas joias. Verdade seja dita, nenhuma das muitas penas que depois me tocaram ao longo dos trinta e tal anos que desde então envelheci, me fizeram penar tanto em tão pouco tempo.

Mas dobrado este tormento, nas duas vezes, com a bênção de uma “boa horinha”, escancararam-se-me finalmente as portas do céu, quando cingi ao peito, pela primeira vez, as minhas princesas lindas de morrer com os seus cabelos negros espetados e aquele ar de quem sabe ao que vem e, claro, quando finalmente pude beijar a minha rainha, exausta, de lágrima feliz ao canto do olho, combalida ainda das dores de quem deu luz à vida, mas já pronta a iluminar o caminho das nossas meninas.

Logo ali inaugurei a época da baba, do colinho, das horas pasmadas a olhá-las a dormir, das momices mais ridículas que cartas de amor, dos constantes sorrisos aparvalhados, da histeria ao mínimo sorrisito delas, da festa dos banhos e tantas e tantas outras felizes tolices.

Mas também, logo ali, o indizível cilício da angústia me ferrou definitivamente a alma. A partir dali, sabia de fonte limpa, que o meu coração bateria, apenas, se o delas batesse primeiro. E quantas vezes ele parou, amargurado, suspenso nas suas maleitas, nos seus choros sem razão aparente, nas noites dos mil e um desassossegos, nos sonos trocados, nas noites mal dormidas ou sem dormir, nos dias de testes, de exames, das suas pequenas grandes decisões, das suas desilusões e dos seus desgostos.

Mas, ainda nem o diabo tinha esfregado um olho, já as minhas bebés, como furacões em forma de gente, palmilhavam, imparáveis, a casa de ponta a ponta, não deixando à sua passagem brinquedo sobre brinquedo, nem que nada, nem ninguém escapasse à sua sôfrega curiosidade e à sua energia inesgotável.

Sem licença de Deus, nem minha, cresceram, como se amanhã não houvesse, e, corajosamente, foram enfrentando, de olhos nos olhos, o melhor e o pior da vida. Há velocidade da luz, os batizados, as escolas, as comunhões, as profissões de fé e, finalmente, as faculdades foram ficando para trás das costas e, boquiaberto e assustado, dei por elas já jovens mulheres.

De coração dilacerado, vi aproximar-se a hora em que rasgariam um novo braço de mar, no mar que as viu nascer e tomariam a sua rota num mar só delas.

Era chegada a fatídica hora em que o ninho se esvaziaria. Num abraço aflito aconcheguei-me à rainha-mãe a rezar para que naquele mar oceano cheio de procelas e piratas, elas encontrassem um mar harmonioso e justo, juncado, como o nosso, de perfumadas rosas silvestres, vermelhas de fogo e de espinhos.

Com um nó na garganta, amarrei-me à boia das doces recordações do tempo em que elas se reclinavam no meu peito a ouvir estórias de embalar, e pouco depois caíam, docemente, no sono dos justos, tentando que, como naqueles dias, aquela dádiva me afortunasse com aquela sensação de plenitude e paz, que me fazia crer, não só que nenhum ser humano podia ser tão bárbaro que beliscasse sequer um destes anjos, mas também que, mais dia menos dia, a Humanidade acharia uma benfazeja abracadabra que garantisse que todos príncipes e princesas viveriam, felizes, em paz e em boa e justa harmonia.

Tinha-se finado definitivamente o tempo das estórias de embalar e daquele em que elas acreditavam, que: “Existe algo ilimitado no amor de um pai, algo que não pode falhar, algo no qual acreditar, mesmo que seja contra o mundo inteiro. Nos dias da nossa infância, gostamos de pensar que nosso pai tudo pode…” como me disse a mais velha num texto de Frederick Faber que me dedicou e como me escreveu a mais nova que o pai “… é esta pessoa especial que me dá uma mãozinha, uma mãozona, as duas mãos por completo…”.

Chegou o tempo em que elas sabem que, afinal, o pai não pode tudo e que as suas mãos começam já a perder firmeza, mas acreditam “que o seu amor pode compreender tudo.“.

A verdade é que eu, como todos os pais, tive o privilégio de viver a minha vida e a vida de cada uma delas. As dores delas são sempre minhas, mas a minha felicidade é sempre delas.

Do fundo do coração, agradeço-lhes a elas e à minha rainha a imensa felicidade da paternidade. Foi maravilhoso partilhar com elas esta longa caminhada ainda por terminar. Tendo sido uma honra incomensurável ser pai destes dois seres humanos de excelência, destas duas mulheres de têmpera rija, integras, fraternas e justas, tão diferentes e tão semelhantes.

Elas são, indubitavelmente, o melhor de mim e sei que acreditam que, caso tudo o mais falhe, o amor ilimitado do seu pai jamais falhará.

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