[Crónica] Portugal não é um país excecional

CRÓNICAS/OPINIÃO Hugo Rajão

Andamos enredados numa tese. A tese da “excecionalidade portuguesa”. Ela é pervasiva a todo o espectro político. É suprapolítica, na verdade. Vai da auto-glorificação à auto-depreciação excessivas.

Começa na ideia de que fomos conquistadores, demos mundos ao mundo, e até a colonizar e a escravizar fomos civilizados (como se isso fosse possível!). No oposto a esta lógica, da suposta ‘supremacia lusitana’, encontramos uma espécie de autorracismo, que atesta a inferioridade intrínseca dos portugueses. Consiste na suposição de que somos excecionalmente corruptos, preguiçosos, trapaceiros e todas essas coisas más do “só neste país”.

O Chega aproveita ambas as aceções.  Reitera a suposta ‘supremacia lusitana’, glorifica a história portuguesa, e quem, aos seus olhos, não encaixa ou não pode encaixar nessa narrativa (por não ser ‘português de bem’ ou por não ser português sequer) é, aí assim, degenerado, criminoso, preguiçoso e, portanto, inferior.

No outro polo, muitas pessoas democraticamente imaculadas também não escaparam à tese da ‘excecionalidade portuguesa’. Não por acreditarem na ‘supremacia lusitana’ ou na inferioridade intrínseca de alguns dos seus concidadãos (claro que nunca aceitariam estas assunções), mas pelo contrário, por terem acreditado que Portugal estaria imune à presença política deste tipo de ideias. Excecionais, porque a extrema-direita não pega aqui. Seríamos diferentes por isso.

Estávamos enganados. Para todos os efeitos, somos como os outros. Somos menos xenófobos do que os Franceses? Somos, mas apenas porque há, em Portugal, menos imigrantes. Bastou o seu número, nos últimos anos, ter aumentado residualmente para a temperatura aumentar, e os preconceitos, outrora latentes, se manifestarem.  Até os brasileiros deixarem de ser, aos olhos de muitos, nossos irmãos.

Em iguais circunstâncias somos tão permeáveis como os outros e a passada segunda-feira, 11 de março, foi, porventura, a mais triste da nossa história democrática.

A excecionalidade não reside no coração de um povo, por natureza. O bem, o mal, a justiça, a empatia, a solidariedade, o amor, a compaixão, o respeito e a discórdia democrática, residem no coração de quem decidiu adotar essas inclinações e dedica-se a nutri-las. Dá trabalho. Os limites do outro dão trabalho. Obriga-nos a olhar para dentro, antes de olhar para fora, e questionar “qual é o limite legítimo para a minha conduta”? Então aparece um tipo e diz: “não te preocupes, liberta-te. Estás chateado, não estás? Vai em frente, marimba-te para os sinais de trânsito. Vais atropelar os outros? Pois vais. Mas que tem? Estás chateado, não estás? A vida corre-te mal, não corre? Atropela-os à vontade. Faz o que te apetecer. A culpa do teu descontentamento até é deles, sabias? Eles, os corruptos, os etnicamente viciosos, os moralmente pervertidos. Por isso vai com toda força. Atropela à vontade até porque a tua superioridade legitima o ato. Eles são inferiores. Tu não. Tu és um português de bem, cujos antepassados deram mundos ao mundo!”

Não é libertador? Não é um alívio simples para um problema complexo? Há algum julgamento justo que compense o prazer de uma punição, de uma vingança? Não é tão bom saber simplesmente que o problema da minha vida é culpa do meu vizinho, em vez das variações das taxas de juro, combinados com o índice X e a política Z, e o contexto global Y? Há pessoas com motivos para estarem chateadas. As boas políticas propiciam o florescimento dos valores democráticos, de boa cidadania. A privação oblitera a nossa visão perante os limites do outro. Quando fervemos mensuramos pior. Mas não dá como infantilizar adultos. O programa do Chega é claro e a sua adesão voluntária. O direito a exigir não legitima o atropelo dos outros. Não há regime de exceção para ninguém. Não há excecionalidade portuguesa. Fomos tão crápulas como os outros povos a colonizar e a oprimir. Não somos mais preguiçosos ou corruptos. O “só neste país” não é só deste país. Infelizmente, não somos mais imunes à extrema-direita, também. Mas tivemos a revolução mais bonita. E há quem queira tirar-nos isso.

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