[Crónica] Tributo ao escultor Sérgio Carvalho

Adélio Castro CRÓNICAS/OPINIÃO

Empolingado, bem lá no alto da ponta de uma gigantesca lançadeira, ombreado pelas velhas encostas das Aves e de São Tomé de Negrelos, de espada e crucifixo em riste, vígil e firme como um aço, o comandante supremo das hostes celestiais e sumo guardião do bem e das virtudes assombra o vale do rio Vizela e as vistas que me enchem a janela.

De olhos postos no céu, equilibrado sobre o pé direito num gracioso passo de “ballet”, o “guerreiro espiritual”, empunhando num aparente paradoxo uma espada numa mão e uma cruz na outra, parece orar enquanto peleja a eterna batalha contra os males do mundo e especialmente contra os males que individualmente nos consomem. Na verdade, só mesmo uma gigantesca lançadeira, temperada pelo suor de tantos operários que nesta terra amanharam o pão para si e para os seus, podia ser digno pedestal para o patrono destas honradas e esforçadas gentes que, do nada, caboucaram esta terra entre os Aves plantada.

É nesta janela de sonho onde trabalho que, com um deslumbramento sempre renovado, pasmo daqueles fins de tardes soalheiras em que o sol sarrabisca a sombra do Arcanjo que, com o cair da tarde se vai estirando preguiçosamente chão fora até com ele se alinhar num contraluz perfeito, e o incendiar com um refulgente halo de luz dourada. É também nela que, por tempos infinitos, me perco quando os luares das belíssimas noites de lua cheia o vestem de prata reluzente, os nevoeiros matinais o desvanecem nas manhãs geladas e os ventos e as chuvas torrenciais o fustigam nos dias de invernia.  E é também através dela que, vezes sem conta, me encanto, sempre que as pombas se empoleiram no afiado gume da sua espada gritando ao mundo o que muitos querem calar.

É com ele que muitas vezes partilho, em primeira mão, os momentos em que ventos de feição enfunam as velas da vida e que parecem desvelar no horizonte terras de promissão. Mas é também ele que me arrima nos dias aziagos em que, como canta o Rui: “Parece que o mundo inteiro se uniu pra me tramar”. Nestes dias, é a força da sua espada invencível, da sua cruz poderosa e da lançadeira incansável que me espicaça a levantar e a peitar a vida as vezes que forem precisas.

Sempre me pareceu que a escultura do nosso padroeiro S. Miguel Arcanjo, implantada no jardim adjacente à passagem superior sobre o caminho de ferro, só podia ter sido sonhada e criada por quem conhece bem e sente ainda melhor a alma desta terra e das suas gentes.

Também nunca tive quaisquer dúvidas, que a águia de aço prateado que num soberbo voo rasante engalana o frontispício do estádio do Clube Desportivo das Aves, elevando bem alto os sonhos de vitória de todos os seus adeptos, nasceu por certo na alma de um Avense de coração.

Um belo dia deste último verão, a vida deu-me o precioso presente de não só conhecer o autor destas duas belíssimas obras de arte, mas também um artista e um ser humano de excelência.

O Sérgio Carvalho nasceu em 1949 na nossa Vila das Aves e aqui viveu até aos 18 anos. Em 1966, em plena ditadura, a família refugiou-se em França, onde ele continuou os estudos que tinha iniciado em Portugal.

Lá, não tardou a cair de amores pela mulher da sua vida, e pelo aço que a forja amolecia à força de fogo e que malhado e moldado com engenho e arte se fazia obra sonhada. Para melhor alar este amor, frequentou a Escola Nacional de Artes, e os cursos de História de Arte, de Belas Artes em Paris.

Sonhou e criou a sua primeira obra de arte, uma jóia rara em forma de uma belíssima rosa de metal, para oferecer à sua amada no primeiro aniversário do seu casamento.

Rapidamente, a sua arte e as suas obras conquistaram, primeiro a região onde vivia e trabalhava, e pouco depois toda a França.

A Câmara Municipal de Boé encomendou-lhe uma outra rosa de metal para oferecer ao então presidente da República Francesa François Mittrrand. Mas foi o seu cisne de aço que, em 1986, lhe escancarou as portas do reconhecimento nacional e internacional, tendo sido por causa dela agraciado com o título de melhor artesão de França.

A partir daí, as suas obras e exposições foram-se espalhando pela França e pelo mundo, tendo exposto nas cidades de Munique, Porto, Toledo, Fukuoka, Nova Yorque e Paris, e criado obras tão emblemáticas como a Rosa, Sísifo, o Cavalo de Troia, Nautilus, o Canhão de Borboletas, o Homem de Portugal, Ícaro, o Principezinho, a Borboleta Exótica, a Moto para Escadaria, o Arcanjo São Miguel, a Águia de Portugal e muitas outras mais.

Reconhecendo a excelência da sua arte, as autoridades francesas nomearam-no Comissário Departamental do Artesanato Artístico e cidadão honorário da cidade de Layrac, onde exercia a sua atividade. Foi convidado a lecionar em várias escolas ligadas às artes e ao artesanato artístico, tendo incentivado a sua introdução como disciplina curricular no ensino escolar.

O Sérgio Carvalho é um português da nossa diáspora, que se fez artesão e escultor mundialmente reconhecido.

É um Avense que orgulha Portugal e a Vila das Aves, e que manteve sempre bem vivas as raízes que o ligam à terra que o viu nascer.

Muitíssimo obrigado pelo belíssimo São Miguel Arcanjo, meu vizinho e confidente de todas as horas, muito grato pela vitoriosa Águia do Desportivo das Aves e acima de tudo, obrigado pelo seu carinho por esta sua e nossa terra ancestral.

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