[Destaque] Edgar Pêra filmou Fernando Pessoa na bolha criativa da ‘Rio Vizela’

ATUALIDADE DESTAQUE

Realizador retribuiu apoio durante o mês de rodagem em Vila das Aves com exibição especial de “Não Sou Nada” perante um Centro Cultural repleto. Relato da experiência na ‘bolha’ pandémica através dos olhos de quem a viveu.

Edgar Pêra procurava um escritório com características da década de 30. Para tal, contactou Rodrigo Areias que imediatamente, ao telefone, lhe disse: “mete-te num comboio de Lisboa para o Porto e depois para Guimarães. Sais na estação de Vila das Aves. Eu apanho-te lá e resolvemos já isso”.

O produtor de Guimarães é uma cara bem conhecida de Vila das Aves. Ao longo dos anos, rodou já várias produções com a Fábrica Rio Vizela como cenário e quando ouviu o pedido do realizador, sabia perfeitamente que o local era ideal para as suas intenções. E a decisão foi tomada quase na hora.

Quando em março de 2020, o mundo se fechou, toda a operação ficou em suspenso e teve de ser repensada para a nova realidade. Foi nesse contexto que a escolha da Fábrica do Rio Vizela se tornou ainda mais valiosa, seja em termos logísticos como criativos.

Foi criada uma bolha onde durante o mês de rodagem atores, produção e técnicos viveram e trabalharam, num fluxo constante entre a estadia no hotel Cidnay e a rodagem na ‘Rio Vizela’ que serviu de base para todas as operações.

“O facto de termos vindo para aqui filmar foi transformador”, admitiu Edgar Pêra durante a sessão especial de exibição de “Não Sou Nada” no Centro Cultural Municipal de Vila das Aves. “Tínhamos esta ideia de um escritório onde o Fernando Pessoa tinha todos os heterónimos a trabalhar para ele e mal entrei na Rio Vizela, soube logo que era ali que ia filmar. Foi fantástico poder estar tanto tempo a trabalhar assim”.

Uma “utopia” criativa que, segundo Miguel Borges, ator que interpreta Fernando Pessoa no filme, acabou por jogar a favor da produção. “Não tínhamos distrações. A concentração e o foco foram totais. Criámos ali uma família”, realçou.

Numa produção de grande envergadura no contexto nacional, com um orçamento superior a um milhão de euros, as incertezas pandémicas colocaram muita coisa em dúvida. “Neste cenário, o apoio, por mais pequeno que seja, é sempre significativo e relevante. E o apoio da Câmara de Santo Tirso foi fundamental”, apontou Rodrigo Areias, referindo-se nomeadamente à disponibilidade dos funcionários e técnicos municipais. “Às vezes, são essas ajudas que nos salvam nos momentos-chave”.

Nasceu o ‘Gang do Nada’

Durante aquele verão de 2020, Rui Mário Silva deu vida a um dos heterónimos ao serviço de Fernando Pessoa nos escritórios do “Nothingness Club” e viveu de perto o processo criativo de Edgar Pêra para moldar este filme.

Natural de Guimarães, decorria o ano de 2019 quando o licenciado em Teatro pela Universidade do Minho, na altura a frequentar o mestrado em educação, foi fazer o casting para o filme no polo universitário. Dois ou três minutos numa sala com o realizador e o assistente, precederam um longo período de espera. Até que em janeiro de 2020 recebeu a notícia de que tinha sido selecionado para interpretar um dos heterónimos. E a pandemia transformou aquilo que estava planeado serem quinzes dias de trabalho espalhados ao longo do ano em “duas semanas intensivas” completamente isolados do mundo.

No seio dessa bolha, Rui Mário Silva descreve um grupo de pessoas “muito profissional, capaz” que se proporcionou à criação de amizades que, mais de três anos depois, ainda perduram.

“Estando nós debaixo do jugo de uma pandemia e obrigados a estar sempre todos juntos, acabámos por criar uma família. Estávamos sempre na presença uns dos outros. Todas as refeições, todos os momentos de trabalho, todos os momentos mortos”, relata.

Lembra um episódio em particular quando, “no meio do silêncio não negociável que só podia ser quebrado entre takes”, do nada “irrompe o ruído de um helicóptero fábrica adentro”. Tratava-se de um meio aéreo de combate a incêndios que usava a água do rio Vizela para entrar em ação num incêndio a lavrar ali perto. “Toda a gente parou tudo o que estava a fazer para, por momentos, deixarmos de ser agentes da ação e passarmos a ser espectadores de telemóveis em punho”.

Trabalhar com uma pessoa como o Edgar Pêra, “realizador genial e pessoa que inspira quando fala sobre qualquer assunto”, pode parecer intimidante numa fase inicial, mas as barreiras vão-se esbatendo com o passar do tempo.

“O Edgar sempre nos tratou todos de igual forma e sempre nos ajudou em tudo o que pôde não poupando a palavras para nos esclarecer conceitos”, garante, classificando o realizador como ‘connoisseur’ do universo pessoano que montou um filme que faz jus à genialidade e à complexidade do mundo de Fernando Pessoa.

Enquanto jovem ator, confessa que “foi uma honra tremenda fazer parte deste processo” num elenco recheado com alguns dos melhores profissionais a nível nacional.

“Pessoalmente ganhei muita experiência. Quando se trabalha com pessoas diferentes que tenham tido experiências de vida diferentes e se tem capacidade, humildade e curiosidade para ouvir ativamente e procurar aprender, pode-se ganhar mesmo muito e foi o que procurei fazer”, rematou.

Um “cinenigma” à moda de Pêra

“Este é o filme mais autobiográfico do Edgar Pêra”, confessava Rodrigo Areias, na conversa pós-exibição do filme para a plateia do Centro Cultural de Vila das Aves. Uma afirmação que pode parecer estranha quando o objeto do filme é Fernando Pessoa, onde mais de 90% do diálogo proferido pelos atores são palavras do escritor, mas que depois de vista a obra é perfeitamente percetível.

Por um lado, pela vertente formal. Este não é um filme biográfico sobre aquele que o realizador considera ser “o mais importante escritor português”. É, sim, uma exploração estética do universo pessoano, colocando todos os heterónimos debaixo do mesmo teto. Aquele “Nothingness Club” alberga todos os seus projetos, da Revista Orpheu, que aqui conta já com mais de vinte números editados, à produtora cinematográfica Ecce Film, tornando-se numa panela de pressão de egos que acaba por explodir. É desse ficcional confronto que Edgar Pêra retira o sumo narrativo, misturando e remisturando textos, poemas e símbolos diretamente da obra do próprio Pessoa.

Por outro, a exploração temática. As palavras podem ser de Pessoa e seus heterónimos, mas a sua reinterpretação cinematográfica parte bem de dentro da mente criativa de Edgar Pêra que transforma esta fragmentação identitária num processo claustrofóbico, muitas vezes violento, outras até romântico e cómico. Uma ficção que se apropria dos factos e acrescenta-lhes uma camada de ironia para que o filme possa funcionar em dois tabuleiros: quem conhece e quem não conhece a obra.

Por exemplo, a fita abre com a informação de que Fernando Pessoa teria sido nomeado ao prémio Nobel da Literatura de 1940 que acabou por não ser entregue devido à 2ª Guerra Mundial. Algo obviamente falso, dado que o autor faleceu em 1935.

“Quem souber, percebe o instrumento narrativo. Quem não souber, fica a pensar desde o princípio do filme que, bem, este homem era um escritor muito importante”, explicou em tom jocoso, dando o exemplo das audiências dos festivais internacionais onde o filme foi exibido. “O objetivo passa por estimular a curiosidade e divulgar a obra”.

“Não Sou Nada” é, assim, um objeto perfeitamente alinhado com a carreira de Edgar Pêra, onde este congrega uma vida de leitura de Pessoa com a sua imagem de marca visual, possuindo uns pozinhos lynchianos de “Twin Peaks: Fire Walk With Me”. Só que no lugar da Sheryl Lee como Laura Palmer, existe Vitória Guerra no papel que o realizador classifica como uma “Super Ofélia” Queirós.

“Nunca tinha trabalhado com a Vitória Guerra e ela foi uma cúmplice espetacular”, sublinha Edgar Pêra. “Antes de filmar, discutimos muito todos os conceitos e ela viveu dentro da personagem. Acho que o Fernando Pessoa ia gostar de ter uma super Ofélia. Uma femme fatale de hoje, com as suas ideias e que está ali como um antivírus para lhe desfragmentar a cabeça”. No fundo, para que o espectador perceba que apesar de todas aquelas personagens e personalidades, “a obra pertence mesmo a uma só pessoa”.

Estreado em janeiro deste ano no Festival de Cinema de Roterdão, nos Países Baixos, “Não Sou Nada” encontra-se agora a ser exibido comercialmente nas salas de cinema por todo o país.

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