[Crónica] A falácia da previsão

CRÓNICAS/OPINIÃO Hugo Rajão

À entrada de 2020 foi-me pedido, pela redação deste jornal, para “prever”, em traços gerais, os principais desafios da nova década de 20. Passados dois anos desde esse momento, sinto que posso enviar as minhas previsões para o lixo.

Mentiria se dissesse que havia previsto uma pandemia e uma nova guerra na europa (faria lembrar todos aqueles que “sabiam” que o Éder ia marcar na final do euro 2016). Só ainda estamos em 2022, e as previsões para todo uma década ficaram hipotecadas.

Olhamos para o passado, identificamos um padrão e procuramos replicá-lo no futuro. É assim que fazemos a maioria das nossas previsões. Há uma razão para isso. É evolutiva e diz respeito à nossa preservação enquanto espécie. A regularidade dos fenómenos permite-nos isolar o perigo.

Falhamos, no entanto, porque novas variáveis, que quebram o padrão anterior, são sempre passíveis de surgir. Perante isso, as nossas grelhas de leitura tornam-se desadequadas. Com a pandemia esse erro não foi tão patente. Embora o fenómeno pandémico não fosse historicamente novo, os episódios anteriores ao COVID retomavam a momentos muito distantes do nosso, em termos de salubridade, desenvolvimento tecnológico, e configuração dos sistemas de saúde, para nos atrevermos a catapultar o passado na tentativa de compreender o presente. Isso fez-nos cair num clima de insegurança e dúvida generalizado, que se estendeu até às instituições públicas.

“A Rússia de hoje abraça o capitalismo com todos os seus vícios. É uma oligarquia rentista. Putin, quando muito, instrumentaliza o saudosismo comunista para alimentar a nostalgia imperialista”

O mesmo não acontece com a guerra. Depressa caímos na esparrela. Tornou-se demasiado tentador estabelecer paralelismos com a Guerra Fria? Como não? De um lado a Rússia, do outro um bloco ocidental, cuja maior potência é os EUA.

É um paralelismo absurdo. Nem a Rússia invadiu a Ucrânia para levar a revolução de outubro ao mundo, nem esta guerra (ao contrário de tantas outras) parece estar de feição aos interesses dos EUA – aliás é um grande problema que propicia o empoderamento da China. Ao contrário da Guerra Fria, não está em causa uma disputa ideológica, em que se esgrimam dois modelos socias e económicos diferentes. A Rússia de hoje abraça o capitalismo com todos os seus vícios. É uma oligarquia rentista. Putin, quando muito, instrumentaliza o saudosismo comunista para alimentar a nostalgia imperialista.

Nesta guerra não está em causa a luta de classes, mas uma tentativa de afirmação nacionalista, por parte de Putin. Por conseguinte, se quisermos olhar para o passado, com esperança de compreender o presente e o futuro, faz muito mais sentido olhar para a Primeira Guerra Mundial do que para a Guerra Fria. O que motiva Putin é um certo complexo de Czar, que procura restabelecer o poder do seu império.

Ainda assim, há uma variável nova que escapa a esse paralelismo – a ameaça nuclear latente deste conflito.

Se quisermos compreender o futuro não basta olhar para trás. Temos de ser criativos.

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