De coração apertado, vi-o sentado numa das mesas de pedra que se refastelavam à fresca da majestosa copa dos velhos carvalhos do bosque do Lar. Absorto, ele olhava, sem ver, uns arabescos de luz que uns ariscos raios de sol, furando a densa folhagem agitada por uma leve brisa, macaqueavam no tampo da mesa.
Há uns tempos que ele me parecia muito diferente do homem alegre que me “arrastava” até à “quinta” para me mostrar orgulhoso a horta que amanhava e a pocilga onde criava porcos. É claro que estava muito mais alquebrado, que as rugas tinham cobrado o seu inexorável tributo e que a idade lhe tinha roubado o desembaraço com que, lesto, rabeava por todos os cantos da casa, mas, o que fazia a verdadeira diferença era a falta do seu sorriso franco, aberto e um tudo nada amarotado que a morte da sua Rosa impiedosamente lhe tinha arrancado.
O sr. Manuel Coelho, apesar de só ter aprendido “as letras gordas”, era fino como um alho. À força de suada labuta e de uma farturinha de calos, ele e a sua Rosa amanharam o suficiente para uma vida “limpinha” e, ainda, para um “pezito de meia”, como ele, com mais que justificada vaidade, me dizia. Homem de um bom senso desarmante, decidiu que não seria peso para ninguém e, quando lhe pareceu chegada a hora, adotou o Lar Familiar da Tranquilidade como a sua derradeira casa. Hortelão de mão-cheia, oferecia de coração cheio as “novidades” que cultivava e colhia na horta que amanhava e os porcos que criava na “quinta”, como ele dizia, da sua nova casa. Discreto e generoso, como poucos, mal se apercebia de alguma necessidade, ou dificuldade, apressava-se a oferecer a sua sempre preciosa ajuda, tentando contribuir generosamente para que aquela casa grande fosse um verdadeiro Lar, não só para ele, como para cada um dos que com ele nela viviam.
À falsa fé, um mal ruim, arrebanhou-lhe a saúde e o sossego. E ele, depois de fazer uns quantos tratamentos, decidiu, com a sua serenidade habitual não fazer nem mais um que fosse. Para mal dos meus pecados, fui incumbido da espinhosa missão de tentar convencê-lo a retomar os tratamentos. Sentei-me na tosca mesa de pedra, onde ele me esperava, e lá fui titubeando um punhado de argumentos que ele ouviu até ao fim, atenta e respeitosamente.
– Olhe não me leve a mal – disse ele, passados uns momentos a olhar perdido lá longe, algures no seu longevo passado de 89 anos – mas é que sempre que faço os tratamentos fico um ror de dias tão mal que só me apetece morrer.
E encarando-me com um olhar cansado, onde marejavam uns nacos de felicidade e outros tantos de dor e de saudade, concluiu:
– E, como já cá cantam, pelo menos, mais 5 anos além daqueles que eu contava, porque nunca pensei passar dos 80 e, menos ainda, ficar por cá depois de a minha Rosa partir, se for agora, não tem problema nenhum, já vou mais que na minha vez e, ainda por cima, vou para a beira dela.
E, com receio de me melindrar com tão rotundo não, explicou-me tim-tim por tim-tim as suas razões:
– Sabe, os médicos disseram-me que se eu fizesse os tratamentos poderia durar mais seis ou sete meses e, se não os fizesse, mais dois ou três meses. Ontem fui à Póvoa com os outros utentes e foi uma maravilha que nem queira saber …, apanhei um fartote daquele cheiro a mar que eu gosto tanto e um bocadinho de sol, pus os pés de molho no mar, bebi um finito e até passeei um bocado no picadeiro. Pode parecer nada, mas juro pela alma dos que lá tenho que só este dia valeu muito mais que todos os dias do mês em que fiz os tratamentos, adei, as contas não têm nada que enganar, se cada dia valer mais de trinta, fico a ganhar com fartura.
“Depois do abraço de despedida, fiquei, agora eu, a olhar perdido lá longe, a rezar pela ventura de chegar à idade do sr. Manuel Coelho com, pelo menos, um niquinho da sua extraordinária clarividência”
Adélio Castro
A conversa, deliciosa como cerejas maduras, alongou-se tarde fora, e ele, com um sorriso tristito, foi-me contando as traquinices do seu tempo de menino, das suas maroteiras de jovem, dos duros trabalhos que passou, das peripécias dos seus primeiros amores, do amor da sua Rosa, da imensa felicidade dos filhos e da alegria dos netos e as muitas saudades que tinha destes belos pedaços da sua vida.
Entre lágrimas que não conseguiu sufocar, confidenciou-me que a morte da sua querida Rosa o tinha despedaçado com uma dor sem medida nem tamanho, e que lhe tinha esboroado a vida por completo.
– Olhe que se não me tivesse agarrado à lembrança dos bons tempos que vivi com ela, tinha rebentado de dor. Eu nunca a largo, ela anda sempre comigo, sempre – disse ele batendo repetidamente no peito.
Depois do abraço de despedida, fiquei, agora eu, a olhar perdido lá longe, a rezar pela ventura de chegar à idade do sr. Manuel Coelho com, pelo menos, um niquinho da sua extraordinária clarividência. Naquela bela tarde, à fresca da majestosa copa dos velhos carvalhos do belo bosque do Lar, aquele sábio ancião, do alto das suas letras gordas, abriu-me os olhos para a relevância da saudade. Fez-me ver que, se é verdade que a ladra da vida nos vai arrebanhando a infância, a juventude, os avós, os pais, os amores, os amigos e a saúde, não é menos verdade, que sempre nos deixa um cibinho das suas almas em forma de saudosas memórias. Ensinou-me que, dorida e mais frágil que a inocência de uma criança, só a saudade tem, no entanto, o engenho e arte bastante para vencer a invencível morte, e que, apesar de esta ser uma bem pírrica e devastadora vitória, é, ainda assim, a única que nos abençoa com um pequenito, mas, apesar de tudo, preciosíssimo consolo, que jamais podemos apoucar e, menos ainda, desprezar. Mais tarde, numa derradeira lição, demonstrou por A+B que a morte muito se ri dos efémeros desígnios dos Homens e, exatamente seis meses depois da nossa conversa, nem um mês antes, nem um mês depois, fez-se, serenamente, saudade.