[Crónica] Do Minho a Timor

Adélio Castro CRÓNICAS/OPINIÃO

Desdenhando da demolidora força da distância, da imparável corrida vida e dos seus inelutáveis apertos, os misteriosos laços que irmanavam aquele punhado de homens avigoravam-se, imperturbáveis, completamente indiferentes ao inexorável desfile dos dias. Lá de longe a longe, desinquietados dos mais recônditos recantos desta pátria, punham-se em marcha com o fito, sempre renovado, de matar saudades. Quando se encontravam, apertavam abraços tão rijos como eles, disfarçando umas lagrimazitas teimosas, por entre uns sorrisos amarelos e umas chalaças mal-amanhadas. Mas, como tristezas não pagam dívidas, em menos de nada, trocavam já, numa animada cavaqueira, novas sobre as respetivas saúdes, amores, família, filhos, enfim, sobre as dores e delícias da vida. Pouco depois, no almoço com as respetivas famílias, a alegria medrava em crescendo à medida que os pitéus marchavam lestos, de braço dado com umas pingas de se lhe tirar o chapéu. À hora do café e do bagaço, as risadas e os dichotes iam amainando e os homens recatavam-se a um canto, num recolhimento que prometia confidências.

Logo que os topava com aquele ar cabisbaixo, a rodar, pensativos, o cálice de bagaço, desapartava-me das traquinadas dos da minha igualha e, de mansinho, abeirava-me deles à socapa. Não tardava que as memórias, por tanto tempo aprisionadas, se soltassem numa minúscula corrente, que num ápice se faria torrente.

Sabem – começou um – quando vi o pelotão de fuzilamento à nossa frente, aquelas metralhadoras todas apontadas, camaradas a desmaiar, e aquela voz, que ainda hoje ouço em pesadelos, a gritar “Quem se mexer será abatido“, pensei que não seria possível alguma vez sentir-me mais desgraçado do que naquele dia 19 de março de 61. Mas não podia estar mais enganado continuou ele, enquanto, sorrateiramente, enxugava os olhos – ­­­quando chegamos a Lisboa e me obrigaram a devolver a farda que, pensava eu, me tinham dado no barco, e tive de me apresentar aos meus pais, como um maltrapilho, com os restos esfarrapados da farda, que vesti durante os seis meses de cativeiro, mais que desgraçado, senti-me um miserável monte de esterco.

Que cativeiro? – perguntou de imediato outro. – Não ouviram o iluminado do ministro da Defesa a dizer, todo pimpão, que não houve cá prisioneiros de guerra, estivemos, sim, foi à espera de transporte… seis mesitos apenas…  

– Reduziram os efetivos de 12.000 homens, que já era quase nada, para 3.500 que era muito menos que nada – retorquiu outro. Éramos 3.500 com material do pior contra quase 50.000 com material do melhor. Lembram-se daquelas munições anticarro que nem saíam do cano da arma e quando saíam não explodiam? Mas que raio é que aqueles gajos do governo esperavam de nós?

– Que morrêssemos, porra, que morrêssemos – explodiu outro.

“Hoje, como ontem, estes tolos pretensiosos ainda acham que podem ser donos da verdade. Mas a verdade, tal como a liberdade, não tem dono e muito menos senhor”

Adélio Castro

Ao fim da tarde, prestaram uma sentida homenagem aos 29 camaradas que tombaram na India e aos que partiram depois do regresso. Como sempre, encerraram o encontro com uma mensagem de eterno agradecimento e profunda admiração ao tenente-capelão Joaquim Ferreira da Silva que, na iminência do fuzilamento de todos os prisioneiros de guerra portugueses, arriscando a vida, saiu da formatura e conseguiu convencer o brigadeiro indiano a não perpetrar aquele horrendo massacre, tendo sido, apesar disso, severamente punido em Portugal.

No dia seguinte, completamente indiferentes ao sofrimento, às vidas e às memórias, que eu tinha testemunhado nas lágrimas furtivas do meu pai e dos seus camaradas de armas, metralharam-me, pela enésima vez na escola, que o Portugal uno e indivisível do Minho até Timor, incluía, Goa, Damão e Diu. A India Portuguesa, que há tantos anos o exército indiano tinha esmagado, juntamente com a vida de 29 soldados portugueses, e a liberdade de milhares de outros que foram feitos prisioneiros de guerra.

Com apenas dez anos, varado e profundamente desapontado, constatei pela primeira de tantas outras vezes, que, fosse qual fosse a realidade, a “verdade” que verdadeiramente contava era a que se decretava nos gabinetes do poder, a que era ensinada nas escolas, pregada nos púlpitos e, para todos os que tivessem dificuldade na sua aprendizagem, a  mãe pátria, sempre generosa, oferecia todas as explicações que fossem necessárias nas muitas esquadras e prisões deste jardim.

Não prevejo possibilidade de tréguas, nem prisioneiros portugueses, como não haverá navios rendidos, pois sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos ou mortos.”, tinha proclamado, à sombra da tranquila segurança das ameias do forte de S. João, o homem providencial. Pela primeira de tantas outras vezes, percebi, horrorizado, que 3.500 vidas humanas eram consideradas uma pechincha, para se ganhar uns pontitos no xadrez da diplomacia mundial.

Hoje, como ontem, floresce uma crescente caterva de homenzinhos providenciais, que escondidos atrás de tranquilos fortes, de luxuosos “búnqueres”, de dispendiosos exércitos de guarda-costas ou de mesas de cinco metros, semeiam ódio e sofrimento pelo mundo fora, atirando os filhos dos outros para o inferno da guerra, ornejando-lhes a gasta lengalenga, que só podem voltar vitoriosos ou mortos.

Hoje, como ontem, estes tolos pretensiosos ainda acham que podem ser donos da verdade. Mas a verdade, tal como a liberdade, não tem dono e muito menos senhor e, pode até tardar 46 anos, como tardou a reabilitação dos soldados portugueses feitos prisioneiros na India e a condecoração póstuma do tenente-capelão, natural da Vila das Aves, Joaquim Ferreira da Silva, mas não falha, nunca. 

P.E. Joaquim Ferreira da Silva viveu em Rebordões, vila onde foi erguido este memorial

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