[Crónica] Memórias de invasor e invadido (I)

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

Recentemente, João Fernandes, ex-diretor do Museu de Serralves, ex-subdirector do Museu Rainha Sofia e atual líder do Instituto Moreira Salles no Rio de Janeiro, em entrevista à Revista Visão, refere que os portugueses não conhecem a sua própria história e que não têm consciência de que foram os maiores comerciantes de escravos do planeta. Na realidade, constatamos que este assunto, nos últimos três ou quatro anos, tem surgido cada vez mais na esfera dos meios de comunicação social nacionais e que até já é debatido nos meandros da política televisiva. Contudo, esta constatação não tira, de forma alguma, a razão e o sentido do apontamento do curador de arte. O que acontece é que as vozes até então sem capacidade para se fazerem ouvir, hoje conseguem “falar”. De facto, mesmo com todas as futilidades dos lemas direcionados para o quadrante repetitivo da glorificação do Quinto Império, temos de nos convencer que o destino deste país vai gravitar sempre em torno daquilo que verdadeiramente somos: um povo com uma relação histórica e cultural com os outros povos das ex-colónias. Para o fazer, devemo-nos compreender de forma sadia e verdadeira, deixando para trás as fábulas lendárias dos manuais simplistas do ensino primário com que nos lecionaram a disciplina de história até 1974. Convém relembrar que o único programa, com o qual milhões de portugueses mais velhos tiveram contacto com esta disciplina, foi esse.

Todavia, não se julgue que este tipo de lacunas se aplica unicamente à história colonial. O mesmo se passa com a história de Portugal continental. Veja-se, por exemplo, o caso da Guerra Peninsular, conhecida como “Invasões Francesas”. Em abril de 1793, durante a Primeira República Francesa, ainda sob a ressaca da Tomada da Bastilha, num conluio internacional de monarquias antirrepublicanas, Portugal decidiu colocar-se ao lado da Inglaterra e da Espanha. Juntamente com o Exército Espanhol, mas sem declarar guerra diretamente à frança, o nosso país invadiu o território francês com uma força de infantaria e artilharia de aproximadamente 6000 homens, comandada pelo General escocês John Forbes. Esta violação das fronteiras gaulesas, conhecida como Campanha do Rossilhão, perdurou até 1794. Nela, as tropas ibéricas conquistaram Villellongue e Ceret e ainda participaram no cerco a Toulon.

“Conhecer a dimensão macro dos conflitos e identificar o impacto que os mesmo tiveram nos locais em que habitamos é substancial. Soletrar os nomes dos nossos conterrâneos que neles faleceram, escrutinar as famílias a que pertenceram, sentir os lugares onde cresceram, tentar perceber porque é que lutaram, são tentativas de aproximação com a dimensão mais verídica das suas desgraças”

Napoleão Ribeiro

Depois vieram as retaliações militares francesas: a retirada para território espanhol, a derrota na Batalha da Montanha Negra e a assinatura de um tratado de paz franco-espanhol que ignorou totalmente os interesses de Portugal. Os diversos acordos e esforços diplomáticos que se lhe seguiram não tiveram qualquer efeito e, após a assinatura do Tratado de Fontainebleau com a Espanha Bonapartista, onde se previa a repartição em três do território português, a França acabou por invadir Portugal em 1807, 1809 e 1810. Tal como aconteceu às forças militares invasoras espanholas e portuguesas no Rossilhão, as tropas francesas foram alvo de ódio e indignação das populações. Em março de 1809 conquistaram Braga, atravessaram o rio Ave, dominaram o Porto e deixaram um vasto número de mortes que todos já esqueceram. No atual território de Santo Tirso foram, pelo menos, 104 pessoas que perderam as suas vidas.

A perspetiva de uma sociedade democrática, construtiva e assente em factualidades históricas, interessa-se por esclarecer a(s) verdade(s) das diferentes narrativas do seu passado e não em memorizar apenas datas de pendor nacionalista e de conquistas glorificadas que visam idealizar um Portugal que nunca existiu. Dar importância às derrotas e defeitos do passado de uma nação é, de facto, aprender.

Conhecer a dimensão macro dos conflitos e, ao mesmo tempo, identificar o impacto que os mesmos tiveram nos locais em que habitamos, é substancial. Soletrar os nomes dos nossos conterrâneos que neles faleceram, escrutinar as famílias a que pertenceram, sentir os lugares onde cresceram, tentar perceber porque é que lutaram, são tentativas de aproximação com a dimensão mais verídica das suas desgraças. As listas desses mortos ajudam a refletir sobre o preço das suas vidas, na sua maioria gente simples que nem sequer tinha acesso à compreensão de uma ideologia política. Não foram formigas que morreram. Esquecê-los é pactuar com a instrumentalização da omissão, a mesma que, no pódio mais infantil da história, glorifica sempre um ou dois senhores reinantes. A verdade é sempre a primeira vítima de uma guerra.

Na imagem, “Quatro Figuras Femininas” de Júlio Pomar, 1952

Guerra Peninsular – Concelho de Santo Tirso – Mortos

TERRAS DE VERMOIM – São Miguel das Aves: Não constam mortos; Santo André do Sobrado: Pesquisa inacessível por inexistência de registos.

CONCELHO DO COUTO DE LANDIM – Areias: Alexandre da Silva, casado com Maria Angélica, do lugar de Sande; António Pereira, casado com Maria Catarina Fernandes, do lugar da Torre; José Luís de Oliveira, casado com Maria Josefa, do lugar do Barreiro; e José, filho de José Gonçalves e de Maria Rosa, do lugar de Fontela | Lama: Jacinto José, casado com Maria Josefa, do lugar do Porto; José, filho do dito Jacinto José, do lugar do Porto; Manuel de Araújo, casado com Maria, do lugar de São Martinho | Palmeira: Miguel Teixeira, casado com Maria Teresa, do lugar do Ribeiro; Custódio de Sousa, casado com Maria Joana, do lugar de Vila Queixe; António Dias Leite, casado com Maria Josefa, do lugar do Casal; Custódio José de Afonseca, casado com Josefa Maria, do lugar da Portelada; Francisco Pinto Lourenço, casado com Custodia Maria [sem indicação de morada]; João Rodrigues de Carvalho, casado com Maria Josefa, do lugar da Portelada; José da Silva, casado com Rosa, do lugar de Real; José Marques, casado com Ana Joaquina, do lugar de Real | Sequeirô: António da Costa, casado com Ana Maria, do lugar de Sequeirô; José Marques, do lugar de Sergidos; Manuel, filho de Manuel Fernandes e Teresa Dias, do lugar de Sequeirô; Manuel Francisco, do lugar de Gomariz.

Os soldados destas quatro freguesias tombaram todos em Braga e na Batalha de Carvalho D’Este em março de 1809.

CONCELHO DE REFOJOS DE RIBA DE AVE – Monte Córdova: José da Cunha, casado do lugar de Quinchães, tombou no lugar da Varziela (ou da Lomba), em Santo Tirso | Reguenga: António, filho de Custódia Carneiro, viúva do lugar de Cantim | São Tomé de Negrelos: Manuel Mendes, casado com Teresa da Silva, do lugar da Devesa.

Os dois soldados destas duas últimas freguesias tombaram no lugar do Facho, em São Tomé de Negrelos. Os soldados das três freguesias faleceram a 25 de março de 1809.

TERMO DE GUIMARÃES – Vilarinho: Manuel Moreira, do lugar do Facho, tombou na Ponte de Negrelos; José, do lugar e freguesia de Santa Eulália da Ordem, junto ao Torrão, apareceu morto em Vilarinho. Ambos faleceram a 25 de março de 1809. COUTO DE SANTO TIRSO – Santa Cristina do Couto: João Carneiro, solteiro do lugar do Outeiro, morto em local desconhecido| São Miguel do Couto: o já referido José da Cunha de Monte Córdova foi enterrado nesta freguesia. Ambos faleceram a 26 de março de 1809.
(continua)

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