[Reportagem] Para além da música, o Palheta Bendita convida ao prazer de deambular

ATUALIDADE

Durante três dias, o parque de Geão, em Santo Tirso abriu as portas ao mundo para um festival onde as tradições de música, dança e ofícios dialogam para demonstrar a riqueza cultural de uma sociedade multicultural.

A noite tinha sido longa e intensa. O palco dos Gansos, o maior do festival montado no Parque de Geão, tinha encerrado com os frenéticos Fidju Kitxora e seguido para o ‘after’ no Carpe Diem, mas durante a tarde de sábado já se sentia a boa energia a circular entre os caminhos ondulantes do recinto do Palheta Bendita.

O suor noturno da dança dava lugar à transpiração soalheira de uma tarde dedicada às oficinas e à experimentação ao nível do solo. O cenário era pintado de vestidos esvoaçantes e pés descalços, enquanto no palco dos Patos, o coletivo feminino cabo-verdiano Bandeirinha Panarikanista abria as hostilidades da oferta musical paredes meias com as cabanas da feira de construtores de instrumentos.

Foi lá que encontramos José Vitorino em amena cavaqueira com uma família composta por pai, mãe e uma muito jovem criança a experimentar um pequeno instrumento de sopro que acabaria por levar consigo. É a primeira vez do construtor de aerofones no Palheta. É do Algarve, mas circula por várias feiras um pouco por todo o país. E foi precisamente num desses certames que conheceu Napoleão Ribeiro e recebeu o convite para vir até Santo Tirso. Tudo por causa das subinas.

Ao passar pela sua banca notou que ao pequeno aerofone de cana José Vitorino dava o nome de “gaita sax” em vez de subina, termo que o próprio construtor desconhecia. A conversa sobre as diferenças regionais relacionadas com a denominação dos instrumentos foi o mote ideal para explorar as suas diferentes dinâmicas culturais.

Se o Norte é um local de fixação, o Algarve é uma região migração. O primeiro beneficia da constância dos seus povos para que a cultura ganhe raízes. O segundo é mais permeável à aculturação daqueles que para lá se deslocam. E ainda hoje esta dinâmica é observável.

“O problema é que é cada vez mais difícil encontrar um algarvio no Algarve e isso reflete-se depois na cultura, nas tradições que lá estavam e se estão a perder todos os dias”, lamenta o construtor.

Naquele idílico final de tarde, entre o verde do cenário natural e o pulsar colorido das pessoas que circulavam pelo festival, José Vitorino refletia sobre o interesse das crianças pelos instrumentos. Numa altura em que uma boa parte da população deixou de ter “contacto com a natureza” porque passaram a viver as suas vidas dentro de uma “gaiola”, seja a “gaiola de casa”, a “gaiola do carro” ou a “gaiola do escritório”, é interessante perceber que a curiosidade ingénua das crianças por estes objetos peculiares se vai mantendo.

Seja uma subina, seja um “passarinho” a imitar o som de um rouxinol ou um qualquer outro instrumento que, por mais simples e rudimentar que possa parecer, desperta a imaginação. Quando isto não passa, de pais para filhos e dos filhos para os seus filhos, a cultura perde-se. Daí que este tipo de espaços comunitários e manifestações multiculturais sejam tão importantes.

“Um país sem cultura, não é um país”, rematou.

Desde que o Palheta Bendita passou de um festival em recinto fechado para o ar livre ganhou asas e desde então nunca mais olhou para trás. Afirma-se como espaço de tradições e multiculturalidade, onde Santo Tirso e o norte de Portugal se confronta com o mundo, abrindo-lhe as portas para um diálogo generoso, não só em cima do palco como na assistência, reflexo da “soma” de que fala Lídia Jorge.

“Este é o ADN do festival”, realça Napoleão Ribeiro, da organização. “A música é uma mistura de tudo, de todas as gentes e de todas as pessoas. A música, a língua, a literatura, as artes, ofícios e engenharias. Se somos o país que somos, é devido precisamente a isso. Portanto, acho que isso é nossa obrigação social também fazer com que isto aconteça”.

Para a Câmara Municipal, que assumiu o financiamento da iniciativa, esta é uma “aposta ganha”, porque diversifica a oferta cultural no concelho e ajuda a potenciar o “belíssimo” parque de Geão.

“Santo Tirso sempre tem primado por uma postura de inclusão nas mais variadas formas. E a música é a melhor forma de nos mantermos todos juntos e unidos em torno de uma sociedade melhor”, sublinhou Alberto Costa.

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