[Editorial] “Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso”

CRÓNICAS/OPINIÃO Diretor

O título deste texto é o primeiro verso de um notável poema de Jorge de Sena, escrito sob a visão de um famoso quadro do pintor espanhol Francisco de Goya, que retrata o fuzilamento de populares que lutaram pela liberdade contra a Invasão Francesa.

Refletindo sobre este episódio de violência “um episódio breve, nesta cadeia de que sois um elo (…) a caminho do mundo que vos sonho”, o poeta assevera que “tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia (…) não hão de ser em vão” e que  é possível,  que esse mundo seja “um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural”, “ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça”.

 O final do poema é um voto de que “o mesmo mundo que criemos, nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa que não é nossa, que nos é cedida para a guardarmos respeitosamente em memória do sangue que nos corre nas veias”.

Recordo este poema escrito há quase 70 anos, sobre um “episódio” com mais de 200 anos, para assinalar a passagem de mil dias sobre o início da odiosa invasão da Rússia à Ucrânia. Faço votos de que não seja em vão a luta do povo ucraniano pela liberdade e pela justiça.

Porém, nada do que se vai sabendo do conflito parece simples e natural, como desejado num mundo ideal. E são enormes os riscos de que o conflito se amplie no próximo futuro.

A guerra é, precisamente, o oposto de ter cuidado com a vida e com o mundo como “coisa que não é nossa”, já que visa a destruição e a morte.

A par desta e doutras guerras e sob o signo do desenvolvimento económico criam-se condições para alterações climáticas cujos efeitos são cada vez mais evidentes. O fenómeno da “gota fria” que assolou Valência deve-se, dizem os cientistas, às mesmas causas que os seis tufões ocorridos em menos de um mês, nas Filipinas. Não é que os fenómenos em si sejam inteiramente novos: é o aumento da sua frequência e da sua intensidade que representa maior ameaça para as regiões afetadas.

Está a decorrer no Azerbaijão a 29ª Conferência das Nações Unidas sobre alterações climáticas. A situação política internacional não parece favorável à obtenção de resultados práticos, nomeadamente no que respeita a acordos sobre financiamentos aos países em desenvolvimento para reduzir as emissões de gases de efeito de estufa e adaptar-se aos efeitos do aquecimento global. 

Este mundo, “coisa que não é nossa”, é a “casa comum de que devemos cuidar como obrigação moral para todos, pensando também naqueles que virão depois de nós”, escreveu o Papa Francisco.

Porém, os problemas agravam-se quando os poderosos são irracionais perante as evidências científicas. “O aquecimento global é uma farsa”, disse Trump. Assim vai o mundo.

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