[Crónica] 50 anos do 25 de Abril: descolonizar o mito

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

No próximo dia 11 de fevereiro terão passado três anos desde o dia em que a COVID-19 levou Marcelino da Mata. Independentemente de ter sido muito ou pouco mediático, no século XX, foi, sem dúvida, uma personagem marcante no teatro das operações de guerra do regime colonial português. Marcelino foi um menino que nasceu em 1940, na Guiné-Bissau, no seio de uma família proprietária de terras e de uma loja comercial. No sistema colonial instituído, era um privilegiado, já que foi um dos muito poucos guineenses, da pré-independência, que teve oportunidade de findar o ciclo de estudos liceais. De facto, nessa época, o número de pessoas da Guiné que estudava era muito reduzido. As poucas crianças que o faziam frequentavam, maioritariamente, as escolas primárias das missões católicas, diferentes das escolas dos portugueses. Estas últimas eram asseguradas pela administração colonial e possuíam um programa educativo diferente das escolas dos guinéus.  

Tal como a grande maioria dos jovens rapazes do império, Marcelino teve que cumprir o serviço militar obrigatório. Em 1960 foi incorporado no Exército por engano (pensavam que era o seu irmão mais velho) e quando se deu o início da Guerra da Independência da Guiné, em 1963, como dominava as diferentes línguas da colónia, o jovem soldado era já imprescindível ao aparelho militar português. Posteriormente, veio a ser integrado na primeira força de comandos africanos, com a qual participou em inúmeras atividades bélicas, por toda a Guiné-Bissau, e em operações que se estenderam aos territórios da Guiné-Conacri e do Senegal, muitas vezes dissimulado com roupas de guerrilheiros e habitantes locais.

O desempenho de Marcelino no terreno não teve limites. Transformado num verdadeiro “cyborg” de guerra, obteve numerosas condecorações do Exército Português. Na Guiné, a sua fama foi crescendo entre as duas facções beligerantes. Na verdade, o próprio, sem papas na língua, e à boa maneira das políticas spinolistas, afirmava que não gostava de cabo-verdianos e nunca se arrependeu das atrocidades e crimes de guerra, perpetrados por si e pelos comandos, que, muitas vezes, violaram o Direito Internacional e a Convenção de Genebra. Se, para o Estado Novo, as condecorações e o facto de ser guineense faziam de Marcelino o homem certo para a propaganda, para a outra facção não passou de um abominável criminoso de guerra que executou irmãos naturais da terra onde nasceu.

Com o 25 de Abril, Marcelino, ao contrário da maioria dos seus conterrâneos das unidades de comandos portugueses, veio para Portugal e aqui viveu até à sua morte. Esses comandos africanos, que ficaram na Guiné, acabaram por ser, tristemente, executados. Por cá, no Verão Quente de 75, Marcelino foi, vergonhosamente, torturado por elementos do MRPP, que o acusaram de ter ligações à facção terrorista da extrema-direita, o ELP (Exército de Libertação Nacional). Depois deste episódio, Marcelino fugiu para a Espanha franquista e só regressou após o 25 de Novembro. No entanto, nunca deixou de se associar a partidos de extrema-direita, como o MIRN (Movimento Independente da Reconstrução Nacional) do General Kaúlza de Arriaga, onde militou, ou ao Partido Nacional Renovador e seu atual partido sucessor, o Ergue-te. É público que, estas três entidades partidárias, tiveram o condão de agregar não só a simpatia das alas mais radicais do regime salazarista, mas também a maioria dos skinheads portugueses, onde alguns desempenharam cargos de direção.     

Conforme refere o jornalista Alexandre Pais no seu blogue pessoal, ao contrário do que escrevem e referem muitos meios de comunicação social, assim como a extrema-direita nos quer fazer crer, Marcelino da Mata nunca foi esquecido pelo Estado português. Entre a data da sua mobilização, como soldado no Exército e o dia em que chegou a Tenente-Coronel, passaram-se somente dezasseis anos. Aquando da sua morte, recebia 4000 € por mês, relativos ao vencimento da sua reforma e a duas pensões mensais, respeitantes às suas condecorações. Este valor era mais alto do que alguns generais e muitos oficiais recebem na reforma.

Marcelino pode ter sido um herói para o regime e para os camaradas que salvou no teatro de operações, mas não o foi nem para os seus conterrâneos, nem para a decência moral do passado e do presente. O anacronismo do julgamento da história não se aplica ao seu caso. Nesse período, as Nações Unidas, e a maior parte do mundo, já condenavam a Guerra Colonial e as “façanhas” sanguinárias que se iam descobrindo. De facto, nós portugueses, cidadãos da Democracia, enquanto “gente de bem”, temos que reconhecer que quer as ideias de pátria e patriotismo, ensinadas nos manuais do Estado Novo de há 80 anos, quer o espírito de camaradagem dos soldados do Exército Português, não se podem sobrepor ao respeito da dignidade humana.  O enaltecimento ideológico de um carrasco, enquanto símbolo da nação, fica-nos mal e nem de perto, nem de longe, deveria inquinar as relações com os povos irmãos da lusofonia.

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