Na presente edição do Entre Margens, a quase um mês da data exata do cinquentenário da Revolução dos Cravos, consta uma reportagem sobre a história de dois sequeiroenses, meus conterrâneos, que na ânsia de fugir à Guerra Colonial, aventuraram-se de barco, pelo mar, até França. Aliás, cresci a ouvir esta narrativa na primeira pessoa, através de Fernando Costa que, na cadeira da sua barbearia, desde a minha infância, me aparou, inúmeras vezes, o cabelo e barba.
Tal como eles, muitos outros refratários fugiram, não por mar, mas sim por terra, para terras gaulesas, o bastião da democracia do ocidente europeu no século XX. Simultaneamente, e como a nossa região bem o sabe, muitos dos portugueses que já tinham combatido em África, também deram “o salto”, fugindo “a monte” pelas montanhas do norte de Portugal e da Espanha, criando a maior vaga de emigração ilegal da Europa do século XX. Aos poucos, nesse período, juntavam-se-lhes as esposas e os filhos que, não raras vezes, também chegavam a além-Pirenéus, de forma clandestina. Conforme me contava meu pai, que também para lá abalou, em 1961, o salário era nove vezes maior daquilo que ganhava na têxtil Sampaio Ferreira & C.ª, o que, de longe, justificava todo e qualquer esforço na procura de uma vida melhor.
O país, a essa data, cristalizado num ideal imaginado pelo ditador do Estado Novo, era essencialmente agrícola e colonial, totalmente ultrapassado, e já não tinha muito para oferecer face ao que se desenrolava no centro da Europa: economia de subsistência; famílias numerosas para alimentar; elevados índices de iliteracia; perspetivas de emprego paupérrimas; ausência de liberdade de expressão; recrutamento para um conflito bélico sem um final aparente; e, sobretudo, sem perspetiva de mudança.
Grande parte da gente que abalou integrou-se na sociedade francesa, constituindo a terceira maior comunidade estrangeira em terras gaulesas e que, ainda hoje, é composta por um milhão de pessoas. Como é constatado por todos, apesar do grande índice de industrialização do Vale do Ave, boa parte das casas aqui edificadas nas décadas de 1960 a 90, senão mesmo a maior parte, foram feitas por emigrados na França, Alemanha e Suíça. Muitos dos seus proprietários nunca voltaram de vez e, juntamente com filhos e netos, continuam a alimentar a nossa economia, através de largas remessas de poupanças assim como do turismo e mercados “da saudade”.
Esse tempo, de “dar o salto a monte”, foi registado nas lentes de um francês, Gérald Bloncourt (1926-2018). Nascido no Haiti, e radicado em França nos finais da década de 1940, este fotojornalista destacou-se pelo compromisso social da sua obra, de onde sobressaiu o retrato neorrealista da emigração portuguesa da década de 1960.
A mão de obra dos “maçons portugais” acabaria por ser um dos alicerces do milagre económico francês dos anos 60, servindo na construção de prédios, edifícios públicos e autoestradas. No entanto, para muitos, a comunidade portuguesa era um incómodo visual à modernidade do Paris pós-guerra: destacava-se pelos grupos de homens pobres, incultos e malvestidos que, quando folgavam, nas tardes de domingo, vagueavam pelas ruas e até se atreviam a mandar piropos às raparigas francesas. Viviam em bairros de lata – os “bidonvilles” – construídos, com chapas de bidões e restos de madeira, em torno das grandes obras. Destes, os mais conhecidos foram os de Champigny-sur-Marne e Saint-Denis. O primeiro, na década de 1960, era o maior bairro de lata de toda a França.
Gérald Bloncourt embrenhou-se no meio das destes bairros e gentes, registando, através das suas lentes, a memória identitária e o imbróglio social dos portugueses nos subúrbios parisienses. Imbuído pelo fenómeno, em 1965, veio a Portugal compreender melhor as razões da emigração, acabando por regressar ao seu país, acompanhando e registando “o salto” de um grupo de clandestinos. Dos seus trabalhos deste período, resultaram imagens de referência, publicadas em inúmeros jornais e revistas, assim como duas importantes publicações: “Por uma Vida Melhor: o olhar de Gérald Bloncourt”, publicado em 2008 e “O Olhar de Compromisso : com os filhos dos grandes descobridores (1954-1974)”, publicado em 2015. Em 1974, voltou ao nosso país para registar o pós-25 de Abril, o que originou o trabalho “Dias de Liberdade em Portugal”, publicado após a sua morte, em 2019.
No ano das comemorações do cinquentenário do 25 de Abril de 1974, vale a pena revisitar a obra deste humanista amigo de Portugal e do mundo, que, ainda em vida, foi agraciado com as distinções de Cidadão Honorário de Nova Orleães, EUA (1988); a Medalha da Cidade de Paris (2008); Cavaleiro da Ordem das Artes e das Letras de França (2011); Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra de França; e, em 2016, como Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, durante as comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em junho de 2016.