[Reportagem] De portas abertas ao mundo com a Jornada Mundial da Juventude

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Peregrinos dos quatro cantos do mundo estiveram durante quatro dias na região antes de partirem rumo a Lisboa para o programa oficial das jornadas. Vila das Aves acolheu grupo com mais de três dezenas de peregrinos norte-americanos. Por Santo Tirso passaram mais de 800.

Entre Portugal e a Califórnia, estado na costa oeste dos Estados Unidos da América, há um oceano e um continente de distância. São cerca de 9 mil quilómetros que separam as duas realidades, aproximadas agora pela realização da Jornada Mundial da Juventude em território nacional.

Antes da viagem para Lisboa, cujo o programa oficial decorre até 6 de agosto com a presença do Papa Francisco, Vila das Aves acolheu durante quatro dias um grupo composto por 31 peregrinos norte-americanos, provenientes de vários pontos da Califórnia. Grupo em que a sua heterogeneidade étnica apenas ajudou a realçar a mensagem de comunhão perante a fé católica que o evento pretende celebrar.

De facto, os números falam quase por si. Só a vigararia de Santo Tirso recebeu mais de 800 jovens espalhados pelas 19 paróquias, onde não entra sequer Vila das Aves que canonicamente pertence à arquidiocese de Braga. Uma oportunidade única de as comunidades locais se abrirem ao mundo, mostrando a polacos, eslovacos, espanhóis, franceses, alemães, italianos, canadianos e sul-coreanos como é viver no Vale do Ave na terceira década do século XXI.

E a julgar pelo envolvimento da comunidade, a resposta afirmativa com que se mobilizou para mostrar a hospitalidade a quem vem de fora, as jornadas mesmo antes de chegarem a Lisboa, já cumpriram os seus objetivos.

Meses de trabalho intenso

O telefone não parava de tocar. Na sala do aluno da escola secundária D. Afonso Henriques preparavam-se os últimos pormenores para a receção ao grupo proveniente do lado de lá do Atlântico que, em cima da hora, lhes pregava uma última surpresa. Tinham chegado uma hora mais cedo do que o previsto.

“Posso dizer que não dormi”, admitiu Catarina Alves, responsável pelo Comité Organizador Paroquial (COP) de Vila das Aves, em conversa com o Entre Margens. “Foi muito trabalho, é verdade, mas neste momento sinto mais aquela ansiedade de ver tudo a acontecer”.

Após meses de planeamento, de ideias que começaram a fluir e que talvez pudessem ser vistas como “um passo maior do que a perna”, agora era tempo de tudo sair do papel. A organização partiu do grupo de jovens Renascer, de onde saiu um comité composto por sete pessoas cujo objetivo passaria a ser a organizar a viagem a Lisboa, servir de ponto de contacto para o arciprestado de Famalicão e, claro, planear as pré-jornadas com o acolhimento a comitivas de peregrinos estrangeiros.

“Percebemos que só com sete pessoas não ia dar e abrimos inscrições para quem não estava diretamente envolvido na organização se pudesse juntar. Queríamos dar a oportunidade de mesmo quem não vai a Lisboa, ter um bocadinho das jornadas aqui”, explicou a responsável.

Um trabalho de ‘formiguinha’ ao longo de meses que acabou mesmo por dar frutos e que deixou o padre José Carlos Sá muito “satisfeito” com o modo comprometido com que se se entregaram a um projeto de grande envergadura.

“Temos um grupo de jovens muito dinâmico e fico sobretudo orgulhoso pela oportunidade de terem esta experiência, de promover todas estas atividades, da fazer toda a planificação para que isto aconteça de forma produtiva, construtiva e enriquecedora”, enalteceu o pároco de São Miguel das Aves.

Perante o cenário de uma “atividade de jovens, programada por jovens e para jovens”, o papel do padre, embora importante, fica reduzido a uma espécie de conselheiro. No entanto, como realça José Carlos Sá, “eles foram incansáveis na recolha de apoios, na divulgação, na procura de famílias e de voluntários”.

O resultado deste trabalho foi uma adesão “extraordinária” da comunidade que levou a pároco dar os parabéns pela forma como aderiram a este projeto.

Não fala inglês? O tradutor do google ajuda

Catarina Alves não escondeu a sua surpresa com a forma tão generosa como a comunidade avense respondeu afirmativamente e se mostrou disponível a ajudar nas mais variadas facetas desta empreitada.

“Tínhamos medo que devido a todas as polémicas em que a Igreja e as próprias jornadas estão envolvidas que as pessoas tivessem alguma reticência e deixassem de ver o bom intuito de um evento destes”, explicou a responsável do COP de Vila das Aves.

Bem pelo contrário. Conseguiram assegurar as refeições, sobretudo os pequenos-almoços, com a ajuda de particulares. Não faltaram bolos, doces e outras iguarias preparadas por um conjunto de pessoas prestável. E se a maioria dos peregrinos ficou em famílias de acolhimento, deve-se à disponibilidade de quem abriu as portas de suas casas.

“Não estávamos à espera de ter tanta gente a dizer ‘sim, podem ficar em minha casa”, referiu. “Só a dona Aurora e a dona Miquelina albergaram seis raparigas. A madre do mosteiro das clarissas mostrou-se muito entusiasmada e acolheu também seis peregrinos”.

E se no caso da dona Miquelina o inglês não era um obstáculo, uma vez que foi emigrante na Austrália, já a dona Aurora não fala, nem percebe a língua de Shakespeare. Um problema comum a outras das famílias de acolhimento. A solução sugerida a todos era simples: usar o tradutor do google no telemóvel.

Em 1989, Cristina Pires tinha participado na Jornada Mundial da Juventude realizada em Santiago de Compostela integrada no grupo de jovens de Vila das Aves. Agora, mais de três décadas depois, retribui a experiência abrindo as portas de sua casa para receber duas peregrinas.

“Foi uma experiência única e marcante que deixou sementes na minha vida”, relembra em declarações ao Entre Margens. “Recordo-me do ambiente de comunhão e celebração que se viveu e culminou com a chegada do Papa João Paulo II. Éramos milhares de jovens, vindos de todo o mundo em que o denominador comum era a fé católica”.

Para a docente do Colégio das Caldinhas, tem sido “admirável” a forma como a comunidade se “organiza e reinventa para receber os peregrinos”, ora “preparando as suas casas, as refeições”, ora “acompanhando o grupo que nos visita com alegria e entusiasmo”.

Perante as críticas sobre os custos e o possível retorno económico que um evento desta envergadura pode trazer, Cristina Pires diz-se confusa com aquilo que considera ser o foco errado da discussão pública em torno das JMJ.

“Faz-me alguma confusão quando vejo o foco na preocupação exclusiva com o retorno financeiro, quando o retorno humano e espiritual é amplamente maior e muito mais significativo”, garante. “Os ecos que vão surgindo das comunidades vizinhas e o que se observa nas redes sociais é que este espírito se estende por todo o lado. A Igreja é pluralidade, inclusão e diversidade e será, certamente, esta mensagem de universalidade que o Papa Francisco nos trará”.

Intercâmbio cultural como moeda de troca

Folsom é um condado pertencente à área metropolitana de Sacramento, capital administrativa da Califórnia, localizada a norte do estado conhecido em todo o mundo pelas estrelas de cinema em Hollywood e pela inovação tecnológica de Silicon Valley. É aqui que vive Zach Halloran, 18 anos, integrante do grupo acolhido em Vila das Aves que, em conversa com o Entre Margens, não esconde o entusiasmo por participar nas jornadas e ter a possibilidade de conhecer culturas diferentes.

“Mesmo dentro do catolicismo há várias maneiras de professar a fé”, explica. “Durante toda a minha vida tenho vindo a fazer a mesma coisa e esta é uma oportunidade de conhecer novas pessoas e ver novas perspetivas da fé”. 

Este grupo de peregrinos norte-americanos chegou a Portugal em antecipação até das pré-jornadas, tendo aproveitado a oportunidade de estar na Europa para fazerem os Caminhos de Santiago.

Como relata Aureo Jacome, 18 anos, peregrino de Bakersfield, Califórnia, ao fazer ‘O Caminho’ foi interessante observar que ao mesmo que iam na direção de Santiago, havia muitas pessoas já no sentido contrário, rumo às Jornadas, servindo como antecipação daquilo que vão encontrar na capital portuguesa. Agora, revela, o objetivo, para além dessa troca de experiências com católicos de todo o mundo, passa por “ficar perto do Papa, se possível”.

À espera das três dezenas de norte-americanos em Vila das Aves, estavam um programa extenso de atividades onde a principal intenção do comité organizador foi mostrar um bocadinho daquilo que a freguesia tem de “bonito” nas mais variadas vertentes.

“Quisemos mostrar os nossos sítios e a nossas pessoas”, apontou Catarina Alves. “A Vila das Aves não é uma vila muito pequena, mas não é gigante, nem propriamente um local turístico. Temos um lema que é “o Grupo Renascer, junta-se para comer” e, portanto, pensamos naquilo que podemos oferecer em termos de gastronomia e mostrar-lhes aquilo que costumamos fazer: convívios”.

O condensado programa continha passagens pelos principais pontos da vila, uma manhã desportiva e uma festa cultural no Amieiro Galego, uma rápida visita a Santo Tirso para participar na Festa da Juventude e depois dois dias dedicados a Braga e Famalicão, respetivamente arquidiocese e arciprestado a que a paróquia avense reporta.

Provenientes de um país e de uma comunidade onde ser católico é uma minoria, Zach e Aureo notaram imediatamente à chegada a diferença para a realidade portuguesa.

“Dá para perceber que ser católico faz parte do quotidiano. Talvez não como praticantes, todos os dias, mas é claramente a maioria. É uma experiência cultural e não só religiosa. Eu, por exemplo, frequentei uma escola secundária católica e talvez apenas dez por cento fossem praticantes”, confidencia Zach Halloran sobre a sua experiência a crescer e viver em Folsom.

E essa é uma diferença muito concreta. Mesmo que existam sintomas comuns, como a redução dos católicos praticantes num sentido ativo das atividades pastorais da Igreja, a realidade portuguesa é de uma grande maioria de católicos que cresceram sob a égide cultural do catolicismo.

Jornadas como ponto de viragem

O padre José Carlos Sá não quer alimentar ilusões desmesuradas, mas não esconde que a participação tão ativa da comunidade avense na Jornada Mundial da Juventude e na ajuda que prestaram a estes jovens, possa servir de ponto de viragem da relação da comunidade com a Igreja.

“Por um lado, fiquei surpreendido, por outro, não”, assinala o pároco de São Miguel das Aves. “Conheço Vila das Aves há três anos e surpreende-me a cada dia que passa. Nunca me desiludiu e neste caso até superou as minhas expectativas”.

Uma semente que está a ser semeada e que se tiver condições, se for regada e cuidada, pode dar frutos. “Este intercambio de experiências e esta jovialidade pode ajudar a trazer um espírito mais aberto, mais disponível e mais respeitoso pelas diferenças”, remata José Carlos Sá.

“Esperemos que as pessoas percebam que é normal ter dúvidas na fé, é normal haver coisas que estejam mal porque o homem falha, mas que isto mostre que há muito para além disso”, enaltece Catarina Alves. “Acima de tudo que acreditem na juventude. As JMJ devem servir para os jovens se chegarem à frente e serem levados a sério”.

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