[Crónica] Não posso fazer isto por ser de esquerda?

CRÓNICAS/OPINIÃO Hugo Rajão

Sem dúvida que existe alguma porosidade entre a ética, que norteia as nossas ações individuais, e a política, que norteia a organização da sociedade. No entanto, não deixa de ser errado querer transformar uma ideologia política numa conceção moral individualista.

Infelizmente a esquerda tem sido vítima dessa tentativa de transformação. Quantas vezes não vemos uma pessoa de esquerda ser acusada de incoerência por pequenos atos ou hábitos de consumos? Há uns anos, fotografias de dirigentes do BE eram partilhadas como chacota pelo “crime” destes estarem na companhia dos seus respetivos computadores Macintosh. É só um exemplo, há muitos.

Na mesma senda, um amigo meu de direita tem o hábito de dizer que é mais livre do que uma pessoa de esquerda. Mas é exatamente assim? Há coisas que só são admissíveis a pessoas de direita?

Esta tese assenta num erro. A de confundir esquerda com franciscanismo. Não é de estranhar que seja tantas vezes dirigida por pessoas de direita, na medida em que se trata de olhar a esquerda pelas lentes da direita. Numa sociedade formalmente democrática, a direita tende a concentrar-se nas escolhas individuais, vistas como plenamente voluntárias. Por seu turno, a esquerda foca-se mais nas circunstâncias sobre as quais essas ações são tomadas. As circunstâncias não se reduzem à agregação das várias escolhas individuais. Ao invés, obedecem a dinâmicas sistémicas que transcendem o plano meramente individual. Estas são muitos fruto de iniquidades passadas que se reproduzem no tempo e ajudam a consolidar assimetrias de poder.

Assim sendo, se uma pessoa de esquerda achar que o seu vizinho devia ganhar mais não tem a obrigação de colocar um pouco do seu salário num envelope e entregar-lhe. Socialismo não é caridade. Nem tão pouco deve penitenciar-se com um cilício. Se é de esquerda acredita que a injustiça salarial tem uma causa sistémica, e, portanto, a justiça é granjeada por alterações políticas nas Instituições que organizam a produção, a organização do trabalho, os impostos, e, por conseguinte, determinam a distribuição de riqueza e rendimento.

Há fronteiras mais difíceis de definir, como o caso Robles mostrou, no entanto não há razão nenhuma para que um camarada não possa comer o seu Big Mac em paz ideológica.

Se a tese já é absurda, nem sequer é coerente quando aplicada, como tem sido feito, a alguns dos casos mediáticos mais recentes.

Vi transmitida a ideia de que o alegado caso associado a Boaventura Sousa Santos seria mais grave, na hipótese de se confirmar, por se tratar de uma pessoa de esquerda. Conclui-se daqui que a direita democrática é, ao contrário da esquerda, a favor do assédio sexual? Ou que é menos contra do que a esquerda? Uma pessoa de direita pode assediar à vontade? Obviamente é um absurdo.

Francisco Geraldes não pode jogar na Arábia Saudita por ser esquerda, como li em tweets sucessivos, mas um jogador de direita pode? A direita democrática não é, tal como a esquerda, igualmente contra a discriminação de género, a escravatura, a pena de morte e a autocracia? Como Polanyi avisava, será que o mercado autorregulado implica uma desincrustação tal em relação às regras sociais, que os seus arautos já não estranham o divórcio do liberalismo económico em relação ao liberalismo político e à democracia formal?

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