[Crónica] Salve Ucrânia

Adélio Castro CRÓNICAS/OPINIÃO

É verdade que, ultimamente, o ódio, a intolerância, a exclusão e a insegurança se têm cevado à tripa-forra nas imensas misérias deste nosso tresloucado mundo. E como sempre acontece em tormentosos tempos, multiplicam-se, sem licença de Deus, os profetas que prometem paraísos amuralhados, agoirando, apocalípticos, que só os muros de exclusão nos salvarão do inferno dos outros. Acredito, no entanto, que esta onda nunca será maremoto, que nunca será alta e negra o suficiente para impedir a humanidade de ver que a sua História é uma sucessão de estrepitosas quedas de impérios, ideologias e muralhas que almejaram perpetuar os paraísos de poucos e o inferno de muitos. Todos, sem exceção, ruíram, alagados em horrendos rios de sangue.”.

Em maio de 2019, numa das minhas croniquetas no jornal Entre Margens escrevi este ingénuo e esperançoso ato de fé.

Volvidas apenas três das mais tormentosas voltas ao sol de que há memória, as sirenes, há muito esquecidas nas brumas das memórias dos velhos filmes de guerra, berram aflitas, já ali, num recanto da velha europa, agoirando morte e destruição. Álgidas, as máquinas de guerra ceifam agora vidas, sonhos e futuros onde dantes se ceifavam campos de girassóis e de trigo. Sucessivas girândolas de mísseis rasgam os céus e trucidam, sem piedade, um país, tentando ajoelhar um povo e dilacerar a alma de uma nação. Mais uma vez, rios de seres humanos, que ainda ontem tinham lar, fogem agora aterrorizados e incrédulos dos escombros da vida que os viu nascer, carregando apenas os filhos e o nada que lhes restou. Mas nenhum destes rios salvou Alisa Hlans, uma menina de sete anos morta no jardim de infância, nem Polina, que estava no último ano da escola primária nem, pelo menos, 103 crianças cujos nomes não chegaram sequer às parangonas noticiosas. Sem misericórdia, o bombardeamento à maternidade de Mariupol esmagou a pélvis e deslocou o quadril a uma mulher grávida matando-a a ela e ao seu filho, arrancado já sem vida das suas entranhas.

O grito desta mulher, que abraçando o corpo do seu filho, suplicava que a deixassem morrer, bombardeou-me a esperança e reduziu a escombros a minha fé de que os oitenta e cinco milhões de seres humanos que tombaram na última grande guerra tivessem enterrado para todo o sempre a horrenda besta que, de tempos a tempos, a humanidade deixa cevar no seu seio. Se nem sequer conseguimos garantir o direito a nascer, só nos resta chorar de raiva e de vergonha, e rezar para que esta tresloucada onda não se faça derradeiro maremoto.

Absolutamente nada pode atenuar e, muito menos, justificar barbaridades deste jaez. Absolutamente nada pode atenuar e, muito menos, justificar a guerra na Ucrânia. Aceitá-la, justificá-la, ou atenuá-la é negar a essência da humanidade. É render-se à lei do mais forte, é aceitar que os mais fracos não têm querer.

Boquiaberto, ouço da boca de ilustres gentes, que os invasores foram acossados e que já se estava mesmo a ver que ia acabar nisto. Esta triste bojarda é tão ruim, ou pior que aqueloutra, que justifica as violações com a estafada pecha: “ela estava mesmo a pedi-las com uma saiinha daquelas”. Afamadas penas bradam que este alarido todo é uma hipocrisia pegada, porque em tantas outras circunstâncias similares, nunca se viu tamanha histeria. É bem verdade, que muitas vezes nos quedamos num vergonhoso silêncio, perante outras invasões que, tal como esta, se fantasiaram de cruzadas santas. É inegável, também, que pouco ou nada fizemos contra horripilantes regimes políticos, que tratam seres humanos como lixo, que condenam as mulheres à infra-humanidade, que proscrevem a dignidade humana, a liberdade, as artes, enfim, os mais básicos pilares da civilização. Pior que isso, toleramos que uns quantos chafurdem deleitados nos seus cofres, outros tantos se acotovelem para arrecadar umas migalhas das suas mesas fartas, e muitos outros os visitem embasbacando-se com “faraonisses” erigidas com dinheiro mais sujo que pau de galinheiro. Mas, é obvio que o erro está no vergonhoso silêncio de ontem e não na justa indignação de hoje; é exatamente por tanto termos errado ontem, que é imperioso que acertemos hoje.

“A história e a vida relembram que, sempre que a grande besta se solta, um gigantesco exército de arcanjos desperta”

Adélio Castro

A História e a vida relembram que, sempre que a grande besta se solta, um gigantesco exército de arcanjos desperta. Arcanjos sem asas, como Nataliya Ableyeva, que, ao fugir destroçada por ter deixado na guerra seus dois filhos adultos, acolheu de braços abertos duas crianças que lhe foram entregues por um pai desesperado, que não a conhecia, para que esta as levasse para longe da guerra e as entregasse à mãe. Como Martin Kimani, embaixador do Quênia na ONU, que lá defendeu: “Em vez de formar nações que sempre olharam para trás na história com um saudosismo perigoso, escolhemos esperar uma grandeza que nenhuma de nossas muitas nações e povos jamais conheceu. Escolhemos seguir as regras da Organização da Unidade Africana e a Carta das Nações Unidas, não porque nossas fronteiras nos satisfaziam, mas porque queríamos algo maior, forjado na paz.”. Como os generosos voluntários e países de todo o mundo que acolhem e amparam os ucranianos o melhor que podem. Como todos os russos que se opõem a esta guerra. Como esta rara união que varre a europa.

Mia Couto escreveu que: “Agora é preciso coragem para ter esperança”, honremos, por isso, a coragem dos ucranianos e de todos os arcanjos sem asas, e acreditemos que, a partir de agora, os tiranetes que fizerem perigar a liberdade, a dignidade e a paz, tombarão às mãos da liberdade, passados ao fio da espada da nossa indignação e repúdio.

Acreditemos que os ucranianos ensinarão aos seus filhos, ao mundo e, principalmente, aos mais fortes que, desta vez, dos mais fracos rezará a História. Acreditemos que, forjado na Paz, algo maior e melhor virá.

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