[Crónica] Pela arquitetura vernacular: As Casas de Lavoura II

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

Antes do período industrial, o conceito de “casa” incluía: as propriedades agroflorestais; os bichos domésticos; e o grande número de indivíduos que habitava a unidade agrícola, abrangendo não só a família nuclear, constituída por pais e filhos, como a família extensa, que abrangia netos, tios solteiros e avós; e ainda outras pessoas que nela podiam habitar: escravos, criados, jornaleiros, caseiros e capatazes. Na realidade, a maior parte da nossa história foi passada com muita gente a viver em poucas divisões.

Se analisarmos as casas de lavoura mais antigas do Médio e Baixo Ave, anteriores ao século XIX, reparamos que, além de já serem escassas, só as mais abastadas possuíam quartos e alcovas. Estas últimas divisões, mais não eram do que uma pequena câmara adjacente a uma sala ou quarto, daí separada por um vão dotado de uma cortina, utilizada para dormir. Repousar numa dependência destas, durante muitos séculos, foi um privilégio de poucos.

Tendo em atenção as datas que constam nos lintéis das portadas das casas agrícolas, que atestam não só construções como remodelações, verificamos que dotar as casas agrícolas com quartos foi um fenómeno que, nesta região, se vulgarizou na centúria de oitocentos. Apesar da ruralidade que, ilusoriamente, a rusticidade das suas pedras transparece, estas modificações foram uma consequência direta das transformações industriais e económicas do século XIX, em especial das primeiras reformas do Liberalismo e das políticas de Fontes Pereira de Melo no período da “Regeneração”.

Este período transformou boa parte do país e os vales dos rios Ave e Vizela foram um centro industrial importante, mudando para sempre os hábitos das suas populações. A expropriação de grandes parcelas, sobretudo agrícolas, aos mosteiros religiosos e a venda dos soutos e os montes comunitários de grande parte das freguesias do país, fez com que, rapidamente, se assistisse à concentração das terras nas mãos da burguesia emergente. A implementação e vulgarização das unidades industriais, propriedade dessa mesma burguesia, essencialmente têxtil, levaram à proletarização das populações, passando as gentes a viver, a partir daí, do seu salário e a ter que pagar impostos. A redução abrupta do número de concelhos trouxe também a concentração administrativa, criando novas centralidades, e a construção de vias férreas possibilitou o escoamento rápido de produtos para mercados até então inacessíveis.

A agricultura beneficiou com a implementação da economia de mercado e isso refletiu-se no casario. Até esse momento, grande parte dos edifícios principais das casas de lavoura mais simples eram constituídos por cómodos destinados aos bichos – as cortes – e aos apuros das colheitas: as adegas, palheiros e cobertos (casas da eira), entre outros. Ao nível habitacional, maioritariamente, continham apenas uma cozinha, uma sala e um quarto. Nestas últimas divisões, dormiam o patrão, a esposa e as filhas. Os filhos homens, muitas vezes, dormiam no palheiro, na barra sobranceira às cortes do gado, num canto de uma adega ou em cabanas de madeira ou pedra adossadas ao eirado central da casa. 

Outra das alterações legislativas oitocentistas, que teve grande impacto nas estruturas agrícolas, foi a extinção definitiva do morgadio, publicada em 1861. Até então, as quintas eram herdadas, de forma indivisível, apenas pelo filho mais velho do patriarca. Assim, isto ajudou a que a maioria das casas das quintas tivesse remodelações profundas, dado que as suas terras começaram a ser repartidas e a mudar de proprietário com frequência. A divisão e subdivisão sucessiva dessas unidades agrícolas propiciou também o fim das atividades lucrativas de muitas propriedades. Assim, a partir daí, em bastantes situações, o senhorio já não morava na quinta ou então construía um novo edifício na propriedade. As velhas casas, algumas ainda do século XVIII, serviram então para acolher as famílias dos caseiros. Como eram destinadas a arrendatários de baixa condição, algumas nunca foram alvo de investimento e a sua pobre e velha arquitetura perdurou até hoje. Este desprezo pelas casas de arrendatários levou a que os gastos na sua manutenção fossem nulos em grande número de casos. Aliás, os seus muros esconderam a miséria que aí prevaleceu até há poucos anos, num tempo em que já se exigia outro tipo de condições e salubridade.

A grande parte destes caseiros de terras vivia num regime de arrendamento penoso. Podiam alugar os terrenos a pequenos e a grandes proprietários. Os primeiros, também amanhavam os campos com a própria família. Em regra, arrendavam algumas latadas que ficavam longe de casa ou alugavam tudo quando saíam da agricultura para laborar noutras atividades.  Os segundos, com mais poder económico, por norma, possuíam uma quinta, onde viviam, que era trabalhada por criados e jornaleiros. As restantes propriedades eram arrendadas aos caseiros que, em regra, possuíam bastantes filhos para trabalhar no amanho das parcelas contratualizadas.

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