[Crónica] 19 de março

Adélio Castro CRÓNICAS/OPINIÃO

O 19 de março é um dia dorido. O mundo incompassivo festeja uma bênção a tantos surripiada. Num berreiro consumista sangra, pela enésima vez, aqueles a quem, num simples sopro, um cínico capricho da morte lhes decepou o melhor da vida. Bem sabem estes, de saber de dolorosa experiência feito, que o afamado tempo, o elixir que tudo cura, é um intrujão encartado que se limita a atirar a pior de todas as dores às gélidas águas do rio da vida e a refastelar-se até que estas, exaustas e dormentes, se deixem enquistar pelo infernal vórtice da resignação. Mais do que nunca, neste dia, estes desventurados arrimam-se na saudade, essa sim, a única com topete que baste para enfrentar e roubar à morte um longínquo, mas ainda assim precioso, vislumbre das almas daqueles que tão impiedosamente lhes foram arrancados.

Neste último 19 de março, quase me dava uma coisinha ruim quando me dei conta que já nem me lembrava da última vez que lhe tinha dado novidades aqui da parvónia. Corri a abrir uma garrafa daquele verde dos domingos em família, sentei-me na velha mesa abrigada pelo diospireiro e numa longa e desordenada torrente dei-lhe conta da manta que se vai pintando neste pedaço de purgatório.

A tua Nazaré está bem, com ar de quem nos vai enterrar a todos. Continua a perder-se no jardim e a estragar com mimos as suas belíssimas flores, que agora são todas para ti. Vai à ginástica e, de vez em quando, ainda faz leituras na missa. Desde que partiste que em casa de cada um dos teus filhos há um quarto vazio, a que as tuas netas e o teu neto chamam o quarto da Avó. Nós bem tentamos que ela os use, mas “qual quê”, ninguém a arranca do aconchego do vosso ninho, do seu jardim, do perfume das tuas flores, das tuas fotografias que estão por todo o lado, das vossas coisas, enfim, do vosso mundo, que ela religiosamente mantém inalterado. Lá conseguimos que, pelo menos, passe os fim-de-semana connosco, mas ao domingo, mal acaba o chá, começa a lembrar, que: “já se acabou o domingo”. Sabes, ela luta todos os dias para tentar preencher a metade dela que sem querer levaste contigo. Não tem sido pêra doce, mas como sabes, ela é uma mulher de têmpera rija e apegando-se às boas memórias, à sua fé, à família e em especial às netas e ao neto, vai paliando a dor da ausência com o bálsamo da saudade.

O teu filho mais novo está ótimo. Continua a tratar da saúde às contas dos outros. Um dia destes, pregou-nos um susto de caixão à cova e teve de ser operado ao coração para substituir a canalização que estava entupida. Correu tudo lindamente. Ele diz que agora com o motor novo é que vai ser. Já lhe disse para se pôr a pau, que o motor até pode ser novo, mas o resto é da mesma idade da canalização velha. Ainda tentei que os médicos aproveitassem a anestesia para lhe dar um jeito à cabeça, mas eles disseram que essa já não tinha ponta por onde se lhe pegasse.

Eu continuo a teimar que a justiça se faça e ela continua a teimar moer-me o juízo. Passados tantos anos, ainda há dias demais em que me pergunto como é que pude ser tão anjinho para me deixar enrabichar por aquela ingrata empedernida. O problema é que sempre que estou quase a mandá-la para um sítio que eu cá sei, ela, de nariz empinado, lá desce do seu altar e faz alguma justiça. E eu, mais uma vez, lá caio perdido de amores e de alma lavada, com a fé renovada e de sorriso parvo, faço-me de novo ao caminho lutando como um danado para que mais lá à frente, num almejado futuro, Sua Excelência se digne descer de novo do seu altar-mor.

Vê lá que as meninas e o menino que anteontem tentavam fazer-te tranças, acabaram os cursos e já trabalham. O teu menino ainda cá está, mas tivemos de desabraçar as tuas três meninas para as deixar voar para os ninhos que fizeram nas cidades grandes onde vivem e trabalham. Nós vamos tentando sacudir esta angústia sem fim, de as sabermos fora das asas a trilhar os seus caminhos sozinhas, nesse mundo desvairado. Elas e ele são o nosso orgulho, mas até um cego vê nelas e nele o reflexo da tua luz.

Quer acredites, quer não, depois de uma pandemia que parou o mundo e que nos prendeu em casa durante meses, um lunático pôs-se a delirar com impérios de antanho e rebentou, mesmo aqui ao lado na nossa velha Europa, uma guerra tresloucada e sangrenta, que já arrasou um país e pôs o mundo inteiro de credo na boca. De repente, foi um ver se te avias e, mais de meio mundo que achava que as armas eram tão necessárias como uma viola num enterro, desatou a comprá-las em força e a qualquer preço. E cá estamos nós, mais uma vez, a gastar biliões e biliões em armas, quando biliões e biliões de seres humanos passam ou morrem de fome.

Ah, já me ia esquecendo…. Estás sentado?… Imagina tu que o teu Clube Desportivo das Aves ganhou a taça de Portugal. A sério, a vila inteira ia rebentando de alegria quando a ganhámos ao Sporting. Olha, foi Natal, Pascoa, 25 de abril e S. João tudo ao mesmo tempo, multiplicado aí por 100. Nunca se viu nada assim. O pior, como dizia a Avó, é que não há gostos acabados, e, ainda as ressacas da festa mordiam, quando, sem aviso, caímos desamparados e de cabeça no inferno. A partir daí, o Aves tem passado um mau bocado e os teus filhos, seguindo o teu exemplo, estão a fazer tudo o que podem e sabem para o ajudar a recompor-se. Não tem sido nada fácil, mas quando as coisas estão mais difíceis, recordo aquela inesquecível deslocação que, juntamente com o Aves, fizemos a Bragança.

Não te preocupes, eu sei que os Avenses virarão o mar e a marinha para que o nosso Aves reencontre o caminho da glória.

Um grande abraço e até sempre pai.

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