[Crónica] Excelência de Pechisbeque

Adélio Castro CRÓNICAS/OPINIÃO

Mais irritante que uma enxaqueca, um misterioso nervoso miudinho aporrinhava-o inclemente e sem tréguas. Uma estranha sensação que lhe faltava não sabia o quê atazanava-o impertinente, açoitando-o com um permanente desassossego. Corrupiava inquieto do sofá para a janela, da janela para a varanda, para uns segundos depois, derreado, se deixar afundar de novo no sofá.

A páginas tantas, perplexo, deu-se conta ressacava do frenesim dos dias que, até há bem pouco tempo atrás, sistematicamente se prolongavam noite dentro e fins-de-semana fora numa intérmina bebedeira de adrenalina. Achou-se falho do bruaá das reuniões, da vozearia das multidões, do arrebatamento dos plenários, da expectativa das votações, do xadrez dos cenários, da constante contagem das espingardas e, acima de tudo, carente da lisonja da sua vasta corte de correligionários e da louvaminhice da chusma de interesseiros que borboleteavam à sua volta. O silêncio soturno, o telefone mudo e quedo, os dias cada vez mais ermos e solitários e a sua novel condição de cidadão anónimo pesavam-lhe mais do que mil consciências de Judas.

Desarvorou daquele purgatório claustrofóbico com ganas de matar as horas que, zombando indiferentes das suas ânsias, mandriavam vazias, pastosas e indolentes. A mata-cavalos, marchou sem destino e até perder o fôlego pelas ruas daquela terra que já fora a sua. De regresso, um nadita mais apaziguado, ficou sem pinga de sangue quando, por acaso, se é que isso existe, deu de caras com o Francisco que, surpreso, o salvou sereno e sem ponta de ressentimento.

“Em modo São Tomé, lá se deixou rebocar para o mundo dos partidos políticos (…). Contra todas as expectativas gostou daquele ambiente febril, daquela tensão conspirativa, das discussões arrebatadas a roçar a agressividade e não poucas vezes grosseria”

O Francisco era um ser humano raro, daqueles que, como dizia uma professora, nem parece deste mundo. Quase sempre, desencantava do nada não só coisa certa, mas também a forma mais acertada de fazer a coisa certa. Era um amigo de todas as horas, um arrimo tranquilo, fraterno e leal. Imberbe ainda, arrebatou-o a ele e a outros amigos para o sempiterno sonho de tentar amanhar um mundo mais livre, mais justo e mais fraterno onde, como ele dizia: “Os cravos de abril floresceriam mais e muito mais alto que as ervas daninhas”. Como acreditava piamente que este sonho, o mais amado filho do povo, nasceria das entranhas da democracia e seria partejado e para sempre bem-amado pelos partidos políticos, não descansou enquanto não o convenceu a participar e a amparar este milagre, filiando-se num deles.

Em modo São Tomé, lá se deixou rebocar para o mundo dos partidos políticos que até ali sempre olhara com indiferente desconfiança. Contra todas as suas expetativas gostou daquele ambiente febril, daquela tensão conspirativa, das discussões arrebatadas a roçar a agressividade e não poucas vezes a grosseria. Sentiu-se em casa, confortável como um peixe na água daquele mar revolto pejado de aspirantes a tubarões. Não tardou a perceber que era daquele mar que partiam as lanchas mais rápidas para os altares do poder e a descobrir que aquela era definitivamente a praia da sua vida.

Desde esse dia, abraçou como seu desígnio maior escalar todos os degraus que fossem necessários para embarcar naquela cobiçada lancha. A cada dia mais implacável, trucidou todos os que se atravessaram no seu caminho. Mal começou a aspirar, muito lá ao longe, uns laivos do perfume do poder, sucumbiu definitivamente àquela voragem, tornou-se toxicodependente da mais poderosa droga do mundo, o poder. Um a seguir ao outro, foi perdendo os amigos, sacrificando uns, atraiçoando outros e ignorando olimpicamente os restantes. Baniu afetos e amores como distrações inúteis. Limitou as suas relações familiares aos apressados jantares de Natal e Páscoa e, lá de quando em vez, a umas breves mensagens nos aniversários. A infindável canseira de controlar, negociar e vigiar a vasta súcia de aliados que pudessem ser mais um degrau na sua escalada, tornou-se o exclusivo intento da sua vida.

Por uma insondável curva da vida, um dia, o Francisco, seu velho amigo e mentor, atravessou inadvertidamente o seu caminho, tanto bastou para que ele o traísse vilmente e sem hesitar. Esta traição, somada a muitas outras desilusões, enterrou definitivamente a esperança do seu velho amigo de que aquele, ou qualquer outro partido pudesse partejar os sonhos de quem quer que fosse.  Ele, como sempre, tentou iludir-se, justificando mais esta ignomínia com o argumento, que só com o poder conseguiria transformar o velho sonho, em obra nova.

Finalmente o seu grande dia chegou e viu-se ministro. Uma guarda pretoriana de graxistas acéfalos, que se esgatanhavam histéricos para ciciar exatamente o que sabiam que ele gostaria de ouvir foi-o distanciando da realidade. Lambuzado por tantas mesuras e salamaleques acabou por se convencer que era uma Excelência, tal como atestavam as muitas placas das obras que, com pompa e circunstância, inaugurava.

Um dia, enredado nas muitas trocas, baldrocas, favores, traições e outras inomináveis iniquidades, caiu do seu altar de pechisbeque estatelando-se com estrondo e desamparado no meio do povo, que, sem demoras nem mesuras, lhe fez ver que não fora estimado, nem respeitado, na melhor das hipóteses, tinha sido temido e agora, nem isso lhe restava.

Viu-se um sexagenário triste, só, sem amigos, amores, família nem carreira. Não tinha projetos e muito menos sonhos. Desperdiçara metade da vida a conquistar o poder, e outra metade a tentar aguentar-se no poder.

Afinal, conquistara o poder e com ele não só não fez obra, como matou o sonho.    

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