[Crónica] Saberes da cultura cigana

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

Nos anos oitenta e princípios de noventa do século XX, nas feiras de gado de Famalicão, em especial na Feira Grande de São Miguel, alguns dos últimos negociantes de equídeos (já então escassos) impressionavam com os trabalhos artísticos que executavam nos animais que ali traziam para vender. Com a lâmina de uma simples gilete, faziam desenhos exímios no pêlo das coxas, do pescoço e das crinas das mulas, asnos e cavalos. Nesse período, no terreno que deu lugar à atual Fagricoop-Cooperativa Agrícola dos Produtores de Leite de Vila Nova de Famalicão, observaram-se as últimas feiras com animais assim decorados. As novas regras veterinárias acabariam por extinguir a maior parte das feiras de gado ao ar livre. Esses animais continham representações elaboradas de cruzeiros, igrejas, plantas e bichos, desenhados com recurso a esquemas geométricos de inspiração popular, dignos de registo. Tratava-se de uma habilidade pouco comum e que, tal como tantas outras coisas, desapareceu. Denominada como arte das rabagens, era feita aquando de uma pequena tosquia, mais corrente nos burros, para os aliviar do calor do estio. Era praticada sobretudo por artífices das comunidades ciganas que também dominavam o ofício de ferrador, resultado da relação ancestral deste povo com estes animais, companheiros necessários aos caminhos das suas itinerâncias e também fonte de rendimento, dado que os negociavam.

O desaparecimento deste tipo de saberes empobrece o património cultural. Contudo, a situação é mais dramática quando isto ocorre e não se efetuaram quaisquer registos da atividade como a sua história, técnicas e contextos socioculturais. Além da perda, gera-se uma lacuna para a transmissão e a fruição patrimonial das gerações futuras. Ao estar associada a uma minoria que assenta muita da sua cultura no saber fazer e na transmissão oral, ainda é mais grave.  

Boa parte das sociedades do mundo gera uma pressão social para que as populações nómadas ou seminómadas se sedentarizem. Primeiro, porque há um mito social, repleto de generalizações abusivas, que afirma que a sedentarização trará uma assimilação. Como se isto tenha de acontecer imperiosamente. Por outro, em muitos locais, o nomadismo ainda é obrigatório sem direito a escolha e alternativa. De facto, entre muitos outros aspetos, não é difícil perceber qual será o futuro e a condição destas pessoas. Maioritariamente iletradas e despojadas de casas ou terras, encontram-se no dilema de escolher entre viver em tendas ou aceitar os constrangimentos de se fixarem, idealizando um vida melhor, o que dificilmente acontece. Invariavelmente acabam nos piores territórios, como as periferias das cidades, rodeados das armadilhas sociais que todos conhecemos e que nos escusamos a enumerar. Em todas as situações há uma constante: o desprezo por parte de muitas populações sedentárias em relação às pessoas e aos seus usos e costumes. Infelizmente é universal.

Quando se fixam numa localidade, uma das grandes mutações destes povos é a perca de muitos elementos da sua identidade. É o caso da arte das rabagens acima descrita. Sem itinerâncias, sem feiras de gado, sem carroças e sem equídeos, perde-se mais uma das ligações das comunidades ciganas aos saberes e fazeres das suas ancestralidades. Aos poucos, os componentes que constituem o seu património cultural, material e imaterial, vão desvanecendo.

Em Portugal o património cultural do povo cigano está muito pouco estudado e quase não fez parte do circuito regular da etnografia portuguesa dos séculos XIX e XX. O que existe é residual. Apesar dos diversos estudos antropológicos, quase todos centrados em questões e políticas sociais, restam-lhes sentimentos de pertença para com as suas comunidades, famílias, música e, principalmente, com a(s) língua(s) que falam. Por exemplo, as comunidades de Santo Tirso, Barcelos, Guimarães, Famalicão, entre outras do norte litoral, por norma, são trilingues. Além do português também falam o galego e o romani caló. Mas ao auscultarmos as comunidades de cá, lá vão referindo que resistem mas que as suas “falas” desvanecem a cada dia, cada vez mais, aculturadas pela hegemonia dos meios de comunicação atuais.

A inclusão instituída não é mais do que um conjunto de determinações ilusórias do assimilador.

FOTOGRAFIA: “Tosquia das bestas em Idanha-a-Nova” de Pedro Rego. In http://museudoburro.blogspot.com. Consultado a 27 de maio de 2021.

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