[Opinião] Raposas a guardar a capoeira

CRÓNICAS/OPINIÃO João Ferreira

Nas últimas décadas, a produção ficcional ou documental sobre a máfia tem sido um assunto de fascínio sem fim. Da sua visualização, salta à vista uma identidade profunda entre o seu modus operandi e a contemporaneidade do capitalismo, a que o escritor Leonardo Sciascia chamou de “sicialinização do mundo”. Uma das táticas de extorsão habitualmente utilizadas, e que mais me chamou a atenção, denomina-se por “protection rackets”. Isto é, quando o extorsionista avisa, nas entrelinhas, o dono de um qualquer estabelecimento de que tem crescido os assaltos na zona (o que é falso), disponibilizando-se a oferecer serviços de proteção. Após recusa ou desinteresse do dono, ordena, sub-repticiamente, a uns bandidos para vandalizar o estabelecimento. Confrontado com a sua destruição, o dono apressa-se em busca do extorsionista a quem pede, em desespero, proteção em troca de um pagamento mensal. 

A lógica do empreendimento criminoso coincide, nos seus fins, com as táticas que predominam no campo neoliberal (hegemónico nas últimas décadas na Europa). Desta feita, mudam os intérpretes. Governos comprometidos com os interesses de grandes grupos económicos vão fomentando o desmantelamento do estado social (incluindo o sistema público de segurança social, os sistemas públicos e universais de ensino e de saúde), bem como de empresas públicas, muitas vezes em regime de monopólio (serviços de água e saneamento, de eletricidade e gás, correios, telecomunicações, transportes urbanos, etc.), amputando-lhes, pouco a pouco, a capacidade de prestar tais serviços, de modo a convencer a população de que só resta a sua privatização. Deixando o Estado de ter capacidade para prestar serviços de utilidade pública, não poderá alhear-se, porém, da sua efetiva produção, o que significa que terá de os contratar ao capital privado, garantindo-lhe rendas perpétuas, sem risco. Como o extorsionista da máfia, criam as condições para a captura da riqueza produzida por outros (trabalhadores).

“Governos comprometidos com os interesses dos grandes grupos económicos vão fomentando o desmantelamento do Estado Social (incluindo o sistema público de Segurança Social, os sistemas públicos e universais de ensino e saúde)”

Ora, tais políticas de amputação do estado democrático das suas competências e obrigações tem sido prosseguida e defendida, em diferentes graus, por PS, PSD, CDS e seus sucedâneos (IL e CH). O que sucede, não só a nível governamental e da Assembleia da República, como também nos municípios. No caso do Município de Santo Tirso, observamos que os serviços de água, saneamento e resíduos sólidos urbanos estão concessionados a privados, como o estacionamento na via pública, além da gestão das cantinas escolares, ocasionando um declínio da qualidade e da quantidade das refeições servidas nas escolas, bem como uma degradação das condições laborais dos trabalhadores. Os efeitos são de conhecimento público. Esta camisa de forças autoinfligida, impede o acesso generalizado, a certeza da continuidade do seu fornecimento, a qualidade do serviço, um preço acessível (de importância extrema num momento de aumento generalizado dos preços), assim como a manutenção de um quadro estável de trabalhadores. No final de contas, não obstante as reduções anunciadas no tarifário da água, o certo é que Santo Tirso continua a ser dos concelhos do país em que mais pesa nos orçamentos das famílias as faturas da água, saneamento e resíduos sólidos urbanos, quando somadas.

À custa dos trabalhadores e das famílias, assim se vai aumentando os lucros do capital privado. Pelo que o futuro não pode ser uma continuação do passado. Não podem continuar a ser as raposas a guardar a capoeira. 

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