[Crónica] A Fábrica

Adélio Castro CRÓNICAS/OPINIÃO

Aprumado no seu quase metro e oitenta de altura, trajando um fato com colete e gravata, como manda o figurino, de cabelo grisalho, irrepreensivelmente riscado, partilhando o peso dos seus 91 anos com uma elegante bengala encastoada, volteou vagarosamente o olhar nas encostas que circundavam a Fábrica, agora rasgadas por um punhado de largas estradas de alcatrão.

De repente, quase jurou que ouviu o toque do primeiro canudo que, por artes mágicas, sempre parecia fazer brotar, nas muitas veredas e caminhos ao redor, regatos de operários que, serpenteando por aquelas encostas abaixo, se iam desaguando uns nos outros, numa crescente torrente que, no fundo do vale, se fazia um mar de gente. Em menos de nada, já o segundo toque silvava, atrigado, num prenúncio de grande final, encarapelando aquele mar numa gigantesca onda, que galgava pressurosa os imponentes portões da Fábrica, para que ao ingente terceiro e último toque, nenhum deles faltasse ao carrego de mais uma jorna. Como se tentasse ser, por uma última vez, mais uma gota daquela gigantesca onda, também ele galgou solene aqueles velhos portões, tal como, há longínquos oitenta anos atrás, tinha feito pela primeira vez ao lado do seu pai.

Bem tentou ver o bulício, os risos, os dichotes e os piropos que aquela imensidão de operários e operárias costumavam trocar entre si enquanto se apressavam para chegar ao seu “lugar”, como naquela época se chamava ao posto de trabalho e ouvir, nem que fosse muito lá ao longe, o monótono matraquear dos teares. Foi direitinho à cantina, aquela espécie de oásis, onde ele e milhares de outros operários comiam o seu caldo, enquanto alijavam por uns momentos a dureza da jorna e trocavam dois dedos de conversa e mal nela entrou, com uma lagrimita ao canto do olho, sentou-se exatamente no sítio onde, naquela enorme sala, cruzou, pela primeira vez, uns olhares com a sua Florinda, que Deus tem. Ao recordar como ela corou até á raiz dos cabelos até se lhe escapou um sorrisito amarelo. De seguida foi ver o “lugar”, onde durante tantos anos suou o sustento e a educação dos seus. Confirmou amargurado que, como bem receava, este estava reduzido a ruínas e a um monte retorcido de ferros velhos. Por entre os seus telhados caídos via-se o canudo que, com os seus toques mágicos, espertou várias gerações de operários que ali amanharam o seu pão. Continuava tão altaneiro como sempre, mas definitivamente mudo, quedo e tão inútil como um desirmanado tamanco velho. Afastou-se o mais rapidamente que pôde daquela solidão esmagadora e daquele silêncio funério. A realidade crua e tão nua como uma Eva é que a sua velha Fábrica estava decrépita, triste e vazia.

“A Fábrica – dizia ele – virou este vale de patas para o ar. O pão que antigamente só se arrebanhava cultivando, amanhava-se agora tecendo, fiando, tingindo, ou sei lá que mais.  A lavoura dantes tocava a todos, agora “tá quieto” ninguém lá suja as mãos. Ficaram todos fidalgos é o que é”

Ao sair, deixou cair o olhar no rio, onde, em menino, tantas vezes se tinha banhado e recordou as muitas vezes que ouviu o seu pai contar que umas gentes vindas de muito longe, com falas que ninguém entendia, tinham plantada a Fábrica ali, mesmo em cima do rio Vizela para, com umas estranhas engenhocas lhe roubarem a força que era precisa para mover aquele mundo de máquinas que mais pareciam obra do demo.

A Fábrica – dizia ele – virou este vale de patas para o ar. O pão que antigamente só se arrebanhava cultivando, amanhava-se agora tecendo, fiando, tingindo, ou sei lá que mais.  A lavoura dantes tocava a todos, agora “tá quieto” ninguém lá suja as mãos. Ficaram todos fidalgos é o que é – concluía ele.

Ele bem se lembrava do exército de tecelões, fiandeiros, tintureiros, afinadores, fogueiros, debuxadores, eletricistas, serralheiros e tantos outros, que, como ele, foram roubados à lavoura para ali aprenderem um outro ofício. De tantas e tantas gerações de famílias inteiras, que lá arrebanharam o seu sustento. Dos muito namoros, casamentos, nascimentos, partidas, alegrias e tristezas, que aquela Fábrica testemunhou e patrocinou. Do caminho de ferro que trouxe a estas bandas um cheirinho a progresso e a grande cidade. Até ainda era capaz de se lembrar do nome de quase todas as fábricas, fabriquinhas e fabriquetas têxteis que, como se não houvesse amanhã, à sombra dela nasceram neste Vale do Ave, transformando radicalmente e nem sempre para melhor, o seu modo de vida, a sua paisagem e os seus rios.

Tal como o seu pai, não podia estar mais de acordo que a Fábrica virou completamente do avesso este nosso pedaço de chão e que ela foi a principal culpada por ele se ter tornado o maior e o melhor centro de indústria têxtil do país.

No entanto, apesar do muito que tudo isso é, infelizmente, ao contrário do que o seu pai dizia, as suas gentes não ficaram, nunca, nem pouco mais ou menos “fidalgas”; a verdade, é que ficaram apenas um bocado menos mal do que antes.

Ainda lhe custava a acreditar que aquele colosso não tivesse conseguido impedir que os 175 anos de inexorável marcha do progresso e do tempo lhe tivessem mirrado a prosperidade ao ponto de a atirar para um canto da História silenciosa, decrépita e triste.

Já quase a chegar aos portões de saída, despediu um último olhar pela “sua” Fábrica e reparou que, aqui e ali, se viam alguns sinais de reconstrução. Curioso, foi logo saber de novas e de fonte limpa apurou, que ali já de novo se labutavam sustentos e prosperidades. Apesar de estar muito, muito longe de poderem pedir meças à sua antiga Fábrica, a verdade é que estes promissores recomeços foram mais que suficientes para lhe adoçar a amargura com um pouquito de esperança. Afinal a alma da sua velha Fábrica do Rio Vizela, fiel depositária de tanto saber, sangue, suor e lágrimas, ainda não se tinha rendido. Ficou convencido que mais dia menos dia, mais ano menos ano, mais geração menos geração, ela, como uma velha fénix invencível, renascerá pronta para, pelo menos, mais 175 anos de luta.

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