[Crónica] Roubo de identidade: dia do trabalhador, não do colaborador

CRÓNICAS/OPINIÃO Hugo Rajão

Há poucas coisas que me causem tanta urticária como o termo “colaborador” aplicado no lugar de “trabalhador”. Está em todo o lado. Até, para maior choque, em instituições do Estado. Fui ao dicionário Priberam pesquisar a definição de colaborador. Vale a pena atentar na primeira opção: “Pessoa que trabalha com outra em iguais circunstâncias de iniciativa.”

Faz a definição jus à nossa realidade laboral? Definitivamente não!

Numa economia de mercado capitalista o trabalhador vende a sua força de trabalho em troca de um salário. Há, portanto, uma oposição de interesses. Quem compra pretende fazê-lo ao preço (salário) mais baixo, quem vende quer fazê-lo ao preço (salário) mais alto. Acontece que geralmente os primeiros têm muito mais poder para fixar o preço (salário) do que os segundos, cuja subsistência depende do salário.

O termo “colaborador” oculta então esta oposição de interesses, e as assimetrias de classe. Remete para uma suposta missão comum, para uma plena horizontalidade na distribuição de poder. A sua utilização não é ingénua. Satisfaz os interesses da classe que compra a força de trabalho, ao tornar o trabalhador mais explorável. Como? Faz por esconder as desigualdades gritantes entre rendimento de trabalho e capital, entre trabalhadores médios e altos quadros. Camufla um mundo laboral cada vez mais inseguro e mal remunerado. Se colaborador significa “Pessoa que trabalha com outra em iguais circunstâncias de iniciativa.”, jamais um caixa de supermercado de uma grande cadeia poderá ser chamado colaborador do seu patrão que ganha 100 vezes mais.

“Se colaborador significa ‘pessoa que trabalha com outra em iguais circunstâncias de iniciativa’, jamais um caixa de supermercado de uma grande cadeia poderá ser chamado colaborador do seu patrão que ganha 100 vezes mais”

Hugo Rajão

Se colaborador significa trabalhar em circunstâncias iguais, então num mundo de colaboradores o melhor para o todo será o melhor para todas as partes. Como vimos, não é isso que acontece no nosso mundo laboral. Mas é essa ilusão que importa passar. É preciso que as pessoas aceitam que o melhor para “a empresa” coincide com o melhor para todas, para que se entreguem à exploração sem reivindicar. Readaptando a célebre frase do Orwell: os colaboradores são todos iguais, mas uns são mais iguais do que outros. 

A luta dos trabalhadores pelos seus direitos vem sendo, ao longo da história, árdua. Hoje veem um novo direito ameaçado. O direito à sua própria identidade. O direito de serem trabalhadores. Mas os trabalhadores têm uma identidade. São trabalhadores, não são colaboradores.

Viva o 1 de Maio. Viva o Dia do Trabalhador!

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