Quando se salienta que passam já mais anos desde o 25 de Abril de 1974 do que o tempo que durou o regime fascista, devemos recordar as profundas transformações democráticas da revolução e os laços de solidariedade aí desenvolvidos. Tal tarefa é indispensável para interpretar corretamente o presente e imprescindível ao esforço de construção do futuro, especialmente quando se tentam ressuscitar tempos de silêncio e de mordaça, de medo e ameaça.
Embora se procure esvaziar a revolução, reduzindo o período de 1974-75 a uma mera transição entre “regimes”, o certo é que ela existiu e fez-se por alguém e, naturalmente, contra alguém, como qualquer outra revolução. Mais especificamente, por uma aliança entre o MFA e o Povo, constituído através de associações, comissões de moradores e de trabalhadores, sindicatos e organizações políticas, contra latifundiários e monopolistas, enfim a reação, como cantava Tordo (“Quem Tem Medo do Comunismo”). A revolução fez-se nas universidades, nos campos, nos bairros, nos portos, nas minas, nas fábricas, nos quartéis, emergindo uma sociedade em que a participação política tinha como objetivo último melhorar as condições económicas, sociais e culturais de grupos sociais cada vez mais amplos. O mito do povo tradicionalmente submisso e de cabeça baixa era desmentido perante cada reivindicação, cada conquista e cada avanço.
“Embora se pretenda esvaziar a revolução, reduzindo o período de 74-75 a uma mera transição entre regimes, o que é certo é que ela existiu e fez-se por alguém e naturalmente, contra alguém, como qualquer outra revolução”
João Ferreira
A luta pela liberdade real para si mesmo e para o conjunto da sociedade não era, para a classe operária e massas populares, uma opção e sim uma necessidade. A liberdade não se limitava à ausência de um poder repressivo, mas também à ausência de privação. Nos anos 70, um em cada quatro portugueses não sabia ler (25%). A taxa de mortalidade infantil situava-se nos 38%, apenas 47% das casas tinha água canalizada, 60% não possuía rede de esgotos, 53% não tinha eletricidade. De um total de 2,8 milhões de famílias, 35 mil viviam em barracas e 620 mil viviam em casas sobrelotadas. Daí que operários industriais e moradores dos bairros de lata ou degradados dos grandes centros urbanos, tenham assumido um protagonismo sem precedentes na vida pública, constituindo-se em comissões de moradores e cooperativas de habitação. Em aliança com estudantes, médicos, profissionais da arquitetura, da engenharia, da sociologia, do direito e economia, realizaram-se diversas iniciativas, como as Campanhas de Dinamização Cultural e Ação Cívica do MFA, as Campanhas de Alfabetização e Educação Sanitária, o Serviço Ambulatório de Apoio Local (SAAL), o Serviço Cívico Estudantil, ou o Serviço Médico na Periferia. Cerca de 41.665 famílias participam no realojamento e transformação dos seus próprios bairros, e Vasco Gonçalves proclamava que enquanto houvesse casa sem gente, não podia haver gente sem casa.
Tendo em conta a capacidade de transformar todo o sofrimento em aprendizagem profunda de vida, a solidariedade habitual entre trabalhadores, as relações de vizinhança e a criatividade das massas populares, começou a desenhar-se uma sociedade que era organizada de maneira a servir igualmente a todos, em vez de penalizar muitos para benefício de poucos. O “outro” não era visto como limite do “eu”, nem o indivíduo se dissolvia no coletivo, nem o coletivo no indivíduo, assistindo-se à construção de caminhos para a efetivação de ambos, indivíduo e coletivo. Assim, mais do que nunca, face aos recuos, à luta contra a inflação, a rigidez salarial e uma desequilibradíssima repartição de rendimentos, numa deriva neoliberal que se vem acentuando desde finais da década de 70, urge retomar Abril e as experiências vivenciadas no passado.