[CRÓNICA] Chutar com o pé que está mais à mão

Adélio Castro

No tempo da outra senhora, o único campo de futebol que conhecia era o velhinho campo Bernardino Gomes onde o glorioso Desportivo das Aves passeava a sua classe. Os putos sonhavam todos jogar naquele gigantesco maracanã, rebentar de orgulho com uma camisola do Aves, driblar de enfiada toda a equipa adversária e entrar baliza adentro e voar…,voar em glória até ao céu…com aquela águia dourada ao peito.

Até lá, jogávamos à bola, num bocado da bouça que havia ali ao lado da quinta do Rioberto, que a “canalha”, à socapa, foi desmatando. Mas, apesar de terem aplicado as mais avançadas “filosofias de jogo” executadas com ressudado engenho e arte, nunca conseguiram expulsar do pelado três raizeiros, que, mais teimosos que a mula do Pândego, lá continuavam espetados, armados em pontas de lança. Além disso, profetizando as tendências agora tão em voga, o nosso pelado tinha uma acentuada inclinação para uma das balizas. Ah… e não havia cá esses luxos de postes e traves… As balizas eram quatro grandes rebos, que emprestavam ao jogo uma especialíssima intensidade, pois, para aí metade do derby se passava em acesa peixeirada a discutir se a bola tinha entrado, ou não, jurando uns que a bola tinha entrado a meio da baliza e os outros que ela passou a rasar à bandeirola de canto. Estes intrincados casos do jogo eram “V.A.R.ificados ” pelo dono da bola que, sob pena de confisco imediato da dita cuja e do alto da sua inquestionável imparcialidade, ditava, sem apelo nem agravo, que a razão estava do lado da equipa dele.

“Foram tempos com bons momentos, mas não esqueço que a nostalgia doura as recordações, multiplicando o doce do passado e o amargo do presente”

Adélio Castro

As únicas chuteiras que conhecíamos eram as que víamos ao longe a fazer magia nos pés dos craques do glorioso Desportivo das Aves e, por isso, os mais afortunados jogavam de sapatos, socos, chancas, sandálias, ou chinelos, conforme a estação, e uns poucos sempre descalços… Claro que, com estas chuteiras de sonho, com os raizeiros, as tocas, os regos e as pedras do nosso pelado, eram mais que muitas as topadas que esgarçavam os dedões quase até ao osso, mas isso, não era nada que um rajada de palavrões e uma milagrosa manada de terra para estancar o sangue não resolvesse. E, logo que o sangue estancava, ala, que o jogo tem que continuar e afinal ainda restavam mais nove dedos em bom estado.

As bolas eram mais raras que dirigentes políticos que alpinaram até à almejada cadeira do poder no seu partido sem esfaquear pelas costas o seu antecessor. A maioria das vezes estavam tão gastas, que de bolas e de redondas, só tinham a alcunha, e por isso, quando por excelso milagre alguém conseguia uma bola de capão, era alcandorado, por inerência e sem qualquer discussão, ao estatuto de nababo, com todas as alcavalas e respeito devido, estatuto só ultrapassado pelo estratosférico proprietário de uma bicicleta.

Soberbo, soberbo, era o nosso balneário. A passo estugado, ficava aí a uns 5 minutos do nosso pelado. De arquitetura tão espetacularmente integrada na paisagem que nem se via, pés direitos a perder de vista, janelas rasgadas e panorâmicas, vistas de parar o coração, com águas mansas, vigorosas ou paradas à escolha e capacidade para acolher de uma só vez as equipas todas do campeonato nacional. Só tinha um pequeno senão, quando os nossos pais descobriam que tínhamos tomado banho no dito balneário, vulgarmente conhecido por rio Ave, caía o Carmo, a Trindade e o chinelo, este último com especial intensidade.

Tenho saudades daqueles jogos épicos, que acabavam aos dez; tenho, acima de tudo, saudades daquele bando de putos. Foram tempos com bons momentos, mas não esqueço que a nostalgia doura as recordações, multiplicando o doce do passado e o amargo do presente. Eram tempos difíceis, em que a vida, como dizia o outro, se “chutava com o pé que estava mais à mão”. Nunca consegui esquecer que alguns daqueles putos andavam descalços no Inverno, que muitos deles suplicaram anos a fio ao menino Jesus, o sonho de uma simples bola de futebol. Não posso, não quero, nem devo esquecer os tantos sonhos que aqueles tempos espezinharam pelo caminho.

A verdade, é que este ainda meu tempo, apesar de me ir dando muitos amargos de boca, é infinitamente melhor que o tal da outra senhora. Só para início de conversa, agora podemos escolher os iluminados que nos desgovernam e, melhor que isso, algum tempo depois podemos enfiar-lhes um biqueiro um palmo abaixo do fundo das costas, com uma simples cruzinha. Além disso, os putos da minha terra têm, agora, mais de dez recintos desportivos com boas condições para jogar à bola e praticar desporto. E, luxo dos luxos, têm também três espetaculares escolas de futebol. E para fim de conversa, os únicos putos que agora vejo a jogar descalços são os que participam nos nossos já famosos torneios de vólei de praia.

[Arquivo – crónica publicada originalmente na edição 620 de 31 de janeiro de 2019. Por motivos profissionais, Adélio Castro não esteve disponível para escrever a sua habitual crónica mensal]

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