[Crónica] Glória

Adélio Castro CRÓNICAS/OPINIÃO

A vida, num daqueles seus erráticos desvarios, despenhou num abismo do mais absoluto e aterrador silêncio, aquela menina inocente e frágil. Uma maleita, que naqueles tempos por aí vagueava à rédea solta, arrancou-lhe à falsa fé, os sons, a música e as palavras, para o resto dos seus dias.

Do pé para a mão, desvaneceu-lhe o aconchego das vozes dos pais e a alegre vozearia das irmãs, dos irmãos e dos amigos, calando-lhe de uma assentada, sem aviso nem explicação, todas as vozes que afiançavam o seu ainda tão pequenino mundo. Emudeceu-lhe a telefonia, a música do seu cantor favorito, a algazarra da criançada, o estribilho da passarada e o restolho do vento. Como se não bastasse, roubou-lhe o sonho de ir à escola, de conhecer o mundo que se entendia para lá dos muros da sua casa e das curtas vistas da sua rua, de aprender a desvendar os mistérios que se escondiam dentro das capas dos livros, de fazer novas amizades, novas brincadeiras e novas tropelias.  

Viver sem nunca ter conhecido a música, o som do riso de uma criança, do repinicar de um beijo, da rebentação das ondas, ou de um grito de alegria é, por certo, um sofrimento sem peso nem medida, mas, nem a mais fértil das imaginações se consegue sequer aproximar da atrocidade de ser cravado numa cruz de perpétuo silêncio, depois de ter amado a música, de já ter adormecido ao som de uma canção de embalar, de já ter ouvido a chuva a bater numa janela e de ter ouvido a mãe dizer, mais vezes que as estrelas do céu: “Deus de abençoe minha filha”. 

As violentas adversidades com que esta menina foi bombardeada arrasariam, num sopro, um regimento inteiro de supermulheres, mas, e apesar todo o seu inimaginável arsenal de dor e sofrimento, esta fez da fragilidade força e, sem desfalecimentos, arrostou-as a elas e à vida que tão injustamente teimou em atazanar-lhe o seu já tão penoso caminho.

Inconformada com o “coitadismo” reinante nos velhos tempos, que, aliás, ainda hoje por aí se arrasta, desabrochou o sorriso fácil que quase sempre lhe iluminava o rosto, e fez-se à vida.

Sem escola “especial” que lhe valesse, por que que naquela altura só as havia lá pela capital, iniciou a primeira grande batalha de reaprender a falar, desta vez sem se conseguir ouvir a ela, nem aos outros. Mal a venceu, diga-se em abono da verdade, com louvor e distinção, atirou-se de corpo e alma a outra nada menos desafiante, a de aprender a “ler” as palavras que os movimentos dos lábios dos outros lhe “diziam”. Em menos de nada, conversava já pelos cotovelos, quase como se nada lhe tivesse acontecido. E, como não era de deixar morrer sonhos sem lutar, tanto andou que acabou por descortinar um atalho para realizar o seu sonho de desvendar os mistérios que os livros guardavam.

Bem cedo, como tinha de ser naqueles dias difíceis, quando chegou a hora de trabalhar para ajudar a pôr pão na mesa da família, apesar de transida de medo de não ser capaz, arrostou de alma e coração mais este desafio. Num ápice, reduziu a pó os seus próprios receios, as reticências e desconfianças iniciais de patrões e colegas, e não só se fez uma excelente trabalhadora, como granjeou o respeito e admiração de uns e outros.

Um pedaço de vida depois, uma promessa de amor cruzou o seu caminho. Mais uma vez, acarando os preconceitos, receios e apreensões alheias, não hesitou em dar-lhe uma oportunidade. Em boa hora o fez, por que este enraizou-se, fortaleceu e floresceu e, um belo dia, perante Deus e os homens, ele e ela prometeram amar-se e respeitar-se todos os dias das suas vidas. A partir desse dia, partilharam as suas vidas e os silêncios a que a vida os condenara a ambos.

Por duas vezes este amor se fez vida, concretizando mais um sonho da menina, agora mãe. Fintando os escolhos com que os silêncios lhes azucrinavam a vida, educaram e fizeram dos seus dois meninos excelentes seres humanos, Homens bons e generosos, daqueles que arriscam as suas vidas, tempo e suor para salvar as vidas, a saúde e os bens dos outros.

Ultimamente parecia que a vida, finalmente, tinha criado juízo, abonançando os passos da menina, agora já mãe e avó, deixando-a desfrutar calmamente da suprema bênção de se orgulhar dos homens em que os seus meninos se tornaram e de se lambuzar, à tripa-forra com o carinho dos netos, que estes entretanto lhe tinham dado.

Mas foi sol de pouca dura, definitivamente a vida impeticou mesmo com ela e cedo, demasiado cedo, uma outra maleita maldita cravou-lhe as garras inclementes e, de supetão, ceifou-a sem apelo nem agravo, deixando-nos atónitos, órfãos e em carne viva.

No entanto, nós sabemos, e sabemos que ela também sabe, que por cá haverá sempre para ela um lugar cativo na mesa, cada vez maior, da memória e da saudade, mesmo ao lado do Luis, do Miguel, da Rosa e da Gabriela e conhecendo-a como conhecemos, é certo e sabido que a Glória descortinará um atalho, como aquele que inventou para aprender a ler, para de alguma forma se manter por cá e de nos confortar a eles e a nós.

Muito em breve, quando toda a família reunir para celebrar o seu habitual encontro de verão, brindaremos todos, os que por cá andam e os que já partiram, à família, à nossa Lola e todos os heróis anónimos como ela, a quem a vida, a sorte, ou o destino condenou, sem culpa formada, a severas limitações, que inexoravelmente as atiram para trás das linhas de partida da vida, mas que, apesar disso, nunca desistem, nunca se conformam, e lutam sempre contra o conformismo, o preconceito e a sobranceria, reerguendo-se incansavelmente após cada queda e cada “derrota”, perdendo batalhas, mas nunca a guerra.

Até sempre Lola, dá um grande abraço ao Luis, ao Miguel, à Rosa e à Gabriela.

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