Empolingado, bem lá no alto da ponta de uma gigantesca lançadeira, ombreado pelas velhas encostas das Aves e de São Tomé de Negrelos, de espada e crucifixo em riste, vígil e firme como um aço, o comandante supremo das hostes celestiais e sumo guardião do bem e das virtudes assombra o vale do rio Vizela e as vistas que me enchem a janela.
De olhos postos no céu, equilibrado sobre o pé direito num gracioso passo de “ballet”, o “guerreiro espiritual”, empunhando num aparente paradoxo uma espada numa mão e uma cruz na outra, parece orar enquanto peleja a eterna batalha contra os males do mundo e especialmente contra os males que individualmente nos consomem. Na verdade, só mesmo uma gigantesca lançadeira, temperada pelo suor de tantos operários que nesta terra amanharam o pão para si e para os seus, podia ser digno pedestal para o patrono destas honradas e esforçadas gentes que, do nada, caboucaram esta terra entre os Aves plantada.
É nesta janela de sonho onde trabalho que, com um deslumbramento sempre renovado, pasmo daqueles fins de tardes soalheiras em que o sol sarrabisca a sombra do Arcanjo que, com o cair da tarde se vai estirando preguiçosamente chão fora até com ele se alinhar num contraluz perfeito, e o incendiar com um refulgente halo de luz dourada. É também nela que, por tempos infinitos, me perco quando os luares das belíssimas noites de lua cheia o vestem de prata reluzente, os nevoeiros matinais o desvanecem nas manhãs geladas e os ventos e as chuvas torrenciais o fustigam nos dias de invernia. E é também através dela que, vezes sem conta, me encanto, sempre que as pombas se empoleiram no afiado gume da sua espada gritando ao mundo o que muitos querem calar.
É com ele que muitas vezes partilho, em primeira mão, os momentos em que ventos de feição enfunam as velas da vida e que parecem desvelar no horizonte terras de promissão. Mas é também ele que me arrima nos dias aziagos em que, como canta o Rui: “Parece que o mundo inteiro se uniu pra me tramar”. Nestes dias, é a força da sua espada invencível, da sua cruz poderosa e da lançadeira incansável que me espicaça a levantar e a peitar a vida as vezes que forem precisas.
Sempre me pareceu que a escultura do nosso padroeiro S. Miguel Arcanjo, implantada no jardim adjacente à passagem superior sobre o caminho de ferro, só podia ter sido sonhada e criada por quem conhece bem e sente ainda melhor a alma desta terra e das suas gentes.
Também nunca tive quaisquer dúvidas, que a águia de aço prateado que num soberbo voo rasante engalana o frontispício do estádio do Clube Desportivo das Aves, elevando bem alto os sonhos de vitória de todos os seus adeptos, nasceu por certo na alma de um Avense de coração.
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Um belo dia deste último verão, a vida deu-me o precioso presente de não só conhecer o autor destas duas belíssimas obras de arte, mas também um artista e um ser humano de excelência.
O Sérgio Carvalho nasceu em 1949 na nossa Vila das Aves e aqui viveu até aos 18 anos. Em 1966, em plena ditadura, a família refugiou-se em França, onde ele continuou os estudos que tinha iniciado em Portugal.
Lá, não tardou a cair de amores pela mulher da sua vida, e pelo aço que a forja amolecia à força de fogo e que malhado e moldado com engenho e arte se fazia obra sonhada. Para melhor alar este amor, frequentou a Escola Nacional de Artes, e os cursos de História de Arte, de Belas Artes em Paris.
Sonhou e criou a sua primeira obra de arte, uma jóia rara em forma de uma belíssima rosa de metal, para oferecer à sua amada no primeiro aniversário do seu casamento.
Rapidamente, a sua arte e as suas obras conquistaram, primeiro a região onde vivia e trabalhava, e pouco depois toda a França.
A Câmara Municipal de Boé encomendou-lhe uma outra rosa de metal para oferecer ao então presidente da República Francesa François Mittrrand. Mas foi o seu cisne de aço que, em 1986, lhe escancarou as portas do reconhecimento nacional e internacional, tendo sido por causa dela agraciado com o título de melhor artesão de França.
A partir daí, as suas obras e exposições foram-se espalhando pela França e pelo mundo, tendo exposto nas cidades de Munique, Porto, Toledo, Fukuoka, Nova Yorque e Paris, e criado obras tão emblemáticas como a Rosa, Sísifo, o Cavalo de Troia, Nautilus, o Canhão de Borboletas, o Homem de Portugal, Ícaro, o Principezinho, a Borboleta Exótica, a Moto para Escadaria, o Arcanjo São Miguel, a Águia de Portugal e muitas outras mais.
Reconhecendo a excelência da sua arte, as autoridades francesas nomearam-no Comissário Departamental do Artesanato Artístico e cidadão honorário da cidade de Layrac, onde exercia a sua atividade. Foi convidado a lecionar em várias escolas ligadas às artes e ao artesanato artístico, tendo incentivado a sua introdução como disciplina curricular no ensino escolar.
O Sérgio Carvalho é um português da nossa diáspora, que se fez artesão e escultor mundialmente reconhecido.
É um Avense que orgulha Portugal e a Vila das Aves, e que manteve sempre bem vivas as raízes que o ligam à terra que o viu nascer.
Muitíssimo obrigado pelo belíssimo São Miguel Arcanjo, meu vizinho e confidente de todas as horas, muito grato pela vitoriosa Águia do Desportivo das Aves e acima de tudo, obrigado pelo seu carinho por esta sua e nossa terra ancestral.