[Crónica] Pe. Joaquim Ferreira da Silva (1916-1987): a coragem de um avense num campo de prisioneiros portugueses de Pondá, Goa

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

Na Portaria n.º 1217/2007, publicada em 31 de dezembro de 2007, o então Ministro da Defesa Nacional, Nuno Severiano Teixeira, fez jus a um homem, ao conceder-lhe, a título póstumo, a Medalha Militar de Serviços Distintos, grau ouro, com palma pelas suas “raras e notáveis qualidades de abnegação, coragem moral, firmeza de carácter e virtudes militares, dignas de serem apontadas como exemplo, classificando-o como distintíssimo e relevante, do qual resultou honra e lustre para as Forças Armadas Portuguesas”. Esse homem foi o Pe. Joaquim Ferreira da Silva, religioso da Companhia de Jesus, nascido em Vila das Aves, a 10 de maio de 1916, que depois viveu em Rebordões e faleceu na Póvoa de Varzim, a 9 de dezembro de 1987. Este clérigo, que chegou a Tenente Capelão, ingressou no Exército a 6 de maio de 1958. Aquando da invasão da ex-colónia da Índia Portuguesa, em dezembro de 1961, foi prisioneiro de guerra no Campo de Prisioneiros de Pondá.

Esse ano de 1961, foi marcante. Num contexto em que países africanos e asiáticos rompiam, definitivamente, os grilhões do colonialismo, Salazar mantinha-se inflexível perante qualquer negociação sobre a independência das colónias. A 4 fevereiro, em Luanda, guerrilheiros de esquerda, do MPLA, armados com catanas, atacam a prisão de São Paulo, a PIDE e o quartel da PSP, tentando libertar presos políticos. Morrem 40 guerrilheiros, 6 agentes da PSP e 1 cabo do Exército. A 15 de março, a fação da direita da resistência angolana, a UPA, inicia uma luta de desobediência dos trabalhadores das fazendas – muitas delas de algodão, propriedade de companhias e particulares do Vale do Ave – que, descontrolada, culmina em massacres sangrentos de 1000 colonos brancos e 6000 trabalhadores angolanos, por todo o nordeste da então colónia.  As milícias de colonos retaliam e fazem 20000 mortos entre os africanos. Rebenta assim a Guerra Colonial Portuguesa.

A União Indiana, cuja independência se dera em 1947, uma nova potência em ascensão, perante a recusa de qualquer diálogo das autoridades portuguesas sobre os territórios de Goa, Damão e Diu, a 18 de dezembro desse ano, através da Operação Vijay, invade o Estado Português da Índia. De antemão, o primeiro-ministro, Nehru, um pacifista convicto, pede ao experiente Exército do seu país (tinha combatido na II Guerra Mundial) para provocar o mínimo de baixas possíveis. Morrem 31 portugueses e 21 indianos. Nos meses que antecederam a ocupação, face às ameaças aéreas e rumores vindos de Nova Deli, as forças armadas lusas, sem força aérea, aguardavam a chegada de armamento, em especial antiaéreo, para assim resistir às operações. Contudo, o que a metrópole enviou foi o célebre carregamento de chouriças… Perante a impotência – factualmente, o território era indefensável – o Estado Novo estava mais interessado numa onda de vitimização, através da chacina dos seus soldados, do que na verdadeira defesa da colónia. Os portugueses caíram rapidamente e, os seus 3300 militares, foram obrigados a capitular, sendo integrados em quatro campos de prisioneiros.  Aí, caem também na humilhação das marchas dos desfiles públicos, perante o gáudio da população da União Indiana. Além disso, foram sujeitos a trabalhos árduos, em especial, a reconstruir as pontes que, previamente, dinamitaram. Alguns, do campo de prisioneiros de Pondá, a 18 de março de 1962, perante a escassez de alimentação e as más condições das instalações, tentaram fugir num camião do lixo. Contudo, um sargento português, precavendo consequências sérias para os restantes camaradas, denunciou a fuga aos oficiais indianos. Perante as ameaças dos restantes soldados, o sargento foi separado dos compatriotas. Nessa noite, numa parada de intimidação, o Brigadeiro Sagat Dingh manda apontar armas aos prisioneiros e ordena que quem quisesse castigar o denunciante desse um passo em frente. Alguns, dão mesmo um passo à frente, confirmando que o querem punir e outros gritam “- Queremos liberdade!”. Perante a afronta, o brigadeiro ordenou então o carregamento das armas ao pelotão de fuzilamento, ergueu o braço no ar e a tensão excedeu todos os limites. Nesse momento, o Capelão Joaquim Ferreira da Silva, saiu da formatura, dirigiu-se ao Brigadeiro Dingh e convenceu-o a suspender o percurso dos acontecimentos. Ordenou aos soldados que, com ele, ditassem um pedido de perdão e saneou a situação.  

Os prisioneiros acabariam por ser entregues a Portugal, via Paquistão. A sua receção foi um processo vergonhoso para o regime. Devido à rendição, o governador, General Vassalo e Silva, foi expulso das forças armadas, sendo só reintegrado após o 25 de Abril. A bravura do Pe. Joaquim Silva só haveria de ser reconhecida em 2007. A chegada dos militares a Lisboa foi uma desilusão. As famílias não foram notificadas do seu regresso. No desembarque, o contacto com a população foi previamente evitado, e todos foram rapidamente encaminhados para comboios antecipadamente preparados, que os trouxeram para quartéis do norte do país. Uma mágoa para muitos, como é o caso de Luís Pinto, um destes prisioneiros, também ele avense, que, no seu livro “A Queda e [In]vasão de Goa, Damão e Diu” relata, na sua perspetiva, de soldado e prisioneiro, muitas destas narrativas e a mácula de, ainda hoje, ter na sua caderneta militar, em letras vermelhas, a palavra “RENDIÇÃO”.

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