[Entrevista – Afonso Bastos] “Por mais que me custe, se não publicasse este livro, não ficava bem”

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Com o seu novo livro, “Memórias da Guerra”, Afonso Bastos navega entre as recordações daquele foi o trauma de uma geração e os símbolos que mais de meio século depois ainda perduram. Apresentação está agendada para o próximo dia 13 de outubro, sexta-feira, às 21h00 no auditório do Centro Cultural Municipal de Vila das Aves.

A poesia desde sempre que foi a sua melhor companheira. Das composições da escola aos papelitos que rabiscava e escondia no bolso das calças durante o serviço militar em Angola. Afonso Bastos é um poeta prolífico e “imparável”. Fez parte da geração que através de encontros, concursos e tertúlias literárias espalhou em verso, por todo o país o nome de Vila das Aves. Agora, com o esmorecimento desse movimento, diz que é preciso “incentivar o espírito, não só a carne” através da poesia e da sensibilidade artística.

Em “Memórias da Guerra”, o autor avense mergulha na crueldade que, tendo ficado em África, continua a ensombrá-lo mais de meio século mais tarde. Daí que afirme que este seja um livro “necessário”: uma expurgação das imagens, dos momentos e dos locais que nunca mais se libertara.

Qual foi o impulso que o fez começar a escrever?

Comecei a escrever desde os bancos de escola. Quando os professores me falavam numa redação, em vez de a fazer em prosa, fazia sempre em verso e eles aceitavam aquilo com muito gosto. É um dom natural.

Diz-se que os escritores são os melhores leitores. Era leitor assíduo desde muito novo?

Fui sempre leitor desde que me lembro: livros de aventura como a coleção Audácia ou o Cavaleiro Andante. Quando comecei a trabalhar na fábrica aos 12 anos, era moço de recados e ia buscar as encomendas e os jornais. Davam-me um escudo para ir comprar o jornal que custava oito tostões e o resto ficava para mim. Comecei a apaixonar-me por aquele mundo. Talvez fosse esse o incentivo que me levou a escrever.

E a poesia surge-lhe como?

A poesia torna-se mais séria quando comecei a escrever para jornais, concursos literários que começaram a aparecer naquela altura e a participar em tertúlias. Era imparável. Não me dava tempo para parar e ganhava incentivo com os elogios das pessoas.

Como é que eram esses encontros e tertúlias?

Tínhamos um núcleo aqui em Vila das Aves composto por vários poetas e reuníamos no Café Surpresa. Eram encontros riquíssimos. Vinham pessoas de todo o lado. Fazíamos tertúlias, participávamos em sessões culturais no Porto, Guimarães, Vila do Conde, Barcelos.

Deslocávamo-nos para todo o lado por causa da poesia. Aliás, costumava dizer que os poetas e o futebol do Desportivo das Aves eram os mensageiros da Vila das Aves. Levamos o nome da vila por todo o país e até ao estrangeiro com a nossa poesia.

Sente falta de toda esta atividade?

Sinto muita falta, porque isto incentiva as pessoas a viver melhor. Precisamos de incentivar o espírito. Se a carne é incentivada, porque não o espírito? A carne sem o espírito não é nada.

O livro chama-se “Memórias da Guerra”. É composto por poemas que escreveu enquanto lá esteve, à posteriori ou uma mistura?

Eu costumava fazer um poema e nunca o acabava. Escrevinhava num papel e metia ao bolso onde ficava durante algum tempo. Mais tarde lembrava-me de qualquer coisa, pegava no papelito amarrotado e completava-o. Alguns poemas fi-los lá, à socapa, muito sorrateiramente porque não podia mostrar qualquer coisa que fosse indesejável.

Quando escrevia lá, o facto era mais vivo. Aqui, era mais pensado. Lá não tinha tempo para pensar. Vivia. Aqui, pensava.

Há um poema no início do livro sobre a chegada a Angola. Dá a ideia de que a expectativa que tinha para o que ia era totalmente diferente daquela que depois encontrou. Quando vai para a guerra, já tinha consciência política do significado de tudo aquilo?

Tinha já qualquer coisa. Já era de esquerda. Sabia que havia qualquer coisa que não estava bem no país. Não tinha era argumentação para o poder discutir. Fui amargurado, mas fui. Muitos chegavam lá e desertavam. Eu nunca tive essa coragem. Havia entre os militares a ideia patriótica de que nos chamavam para ir defender o país para África.

Foi preciso estar lá para conseguir expressar-me sobre o quão errado era aquilo. Vimos tanta injustiça, tantos problemas entre brancos e negros, tanta repressão que nos começou a abrir os olhos.

O poema que dá mote ao livro, “Camioneta Vermelha” refere-se a um local específico. Como é que o recorda?

A minha memória ainda está bem viva. Durante muitos anos sonhava com a camioneta vermelha. Na picada não passavam dois carros e aquele era o único sítio que permitia fazer o transbordo e por isso um ponto de referência muito importante, citado também por Manuel Alegre ou Assis Pacheco.

Aquela camioneta era quase como um fantasma. Toda as vezes que por lá passava, assustava-me, porque era um sítio tenebroso. Assustava pelo silêncio, pela possibilidade de que ali podia acontecer qualquer coisa.

A publicação deste livro com poesia de guerra tem algum significado especial?

Tem muito significado porque há muito tempo que queria publicar um livro sobre a guerra. Foi uma fase difícil, uma transição cruel com momentos onde pensei que nunca mais voltava a ver os meus familiares, os meus amigos e a minha terra. Por mais que me custe, se não publicasse este livro, não ficava bem.

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