Era uma vez, em tempos que já lá vão, bons ventos da Galiza fizeram arribar uma jovem e formosíssima cabreira, às verdejantes encostas de uma belíssima montanha. Generoso e franco, este velho naco de paraíso que ombreava altaneiro, de um lado, com as terras de Trás-os-Montes e do outro, com as terras do verde Minho, acolheu-a de coração aberto e, como sempre fazia às boas gentes que dele faziam seu lar, ofertou-lhe abrigo, pão e beleza a perder de vista. Penhorada, a jovem cabreira fez-se filha desta terra que, nessa longeva era, tinha por graça serra de Agra, e nela passou a pastorear o seu rebanho por entre o verdor das suas tranquilas encostas e dos seus rumorejantes riachos.
Um dia, a quietude morna da sua vida e daquela bela tarde solarenga foi alarmada por um tropel tão fero que fez estremecer o chão da velha serra, como se este fosse uma franzina folhita caída. Entestados pelos valentes garranos, os animais debandaram em grande aflição tentando escapar a um bando de caçadores que, prenunciados por um estardalhaço de trombetas, lhes lançavam rajadas de setas e lhes atiçavam impiedosos os seus ferocíssimos mastins. Tentava a jovem cabreira aquietar o seu susto e sossegar o seu espavorido rebanho, quando o garboso cavaleiro que comandava os caçadores, divisando a sua tribulação, sustou o seu desenfreado galope e, mais ligeiro que o pensamento, desmontou do seu corcel e, solícito, ofereceu-lhe os seus préstimos. Mal a vislumbrou, perdeu-se no fulgor dos seus olhos verdes, mais resplandecente do que uma lua cheia, no seu sorriso mais doce do que uma lua-de-mel e nos seus cabelos mais negros e mais longos do que uma noite de inverno. Mas, dois dedos de conversa bastaram, para lhe desvelar que a alma da jovem cabreira era ainda mais doce do que o seu sorriso, que o brilho dos seus olhos verdes se acendia no fogo da sua imensa bondade e que a sua integridade e modéstia eram muito maiores do que os seus longos cabelos negros e que, afinal, a sua beleza era apenas um dos seus vastos encantos.
Sem vacilar um momento que fosse, despediu os seus confrades de caça e, de joelho por terra, suplicou-lhe o seu coração.
Meia aturdida entre o susto e o enlevo, também a bela cabreira sucumbiu aos encantos do garboso cavaleiro e, arrebatada, logo ali lhe entregou o coração que quase lhe rebentava o peito.
De mãos dadas, correram ofegantes até ao cume mais alto da velha montanha e, neste majestoso altar-mor, abobadados por um imenso céu azul celestial, sob os auspícios do vento norte e apadrinhados por uma belíssima manada de garranos, trocaram juras de amor eterno.
No seu éden privado, apaixonados, felizes e esquecidos do mundo e do tempo que o consome, abrasaram-se, como se amanhãs não houvesse, no deleitoso fogo daquele desmedido amor. Mas, como sempre, mais tarde ou mais cedo, a inelutável realidade cobra o seu tributo, um dia o garboso cavaleiro foi chamado a capítulo por inadiáveis afazeres que o obrigavam a ausentar-se. A duras penas comunicou-o à sua amada, jurando-lhe, no entanto, a pés juntos. que iria num pé e viria no outro, pois já não sabia, nem queria viver apartado dela. No dia seguinte, depois de um interminável beijo, o garboso cavaleiro fez-se ao caminho. Em lágrimas, a formosa cabreira rogou-lhe que lhe dissesse quem era: Sou apenas o homem que te ama e que dá pelo nome de conde de Vila do Conde – respondeu o cavaleiro galopando já em direção ao sol nascente.
Esperarei por ti até ao meu último suspiro – sussurrou a formosa cabreira, acenando-lhe um último adeus.
Reza a lenda oficial que, sem novas do cavaleiro, os dias, semanas e meses se arrastaram lentos, impacientes e doridos. Tenho de o encontrar, de o abraçar, de voltar a sonhar, dizia a cabreira, nem que para isso tenha de me transformar numa ave para o procurar do céu.
Destroçada, chorou como nunca ninguém antes tinha chorado e a torrente das suas lágrimas formou um córrego, que num instante se fez riacho e depois rio, que logo se pôs a correr buscando pelas terras circunvizinhas o amado cavaleiro. Chegado a Vila do Conde, a terra do cavaleiro, e dele não achando novas, rojou-se exausto e vencido ao mar.
Em homenagem à formosa cabreira, o bom povo destas terras deu o nome de Cabreira à serra da Agra onde a cabreira e o cavaleiro se apaixonaram e, como ela queria ser ave e voar, chamaram ao seu rio de lágrimas, Rio Ave.
No entanto, à boca pequena, corre por aí uma versão com um final bem mais feliz.
O pai do cavaleiro era um tirano cruel e, mal soube da baixa estirpe da cabreira, proscreveu-a ameaçando desterrá-la para os confins do mundo. O cavaleiro, para escapar aos algozes do seu pai, transformou-se numa Ave e, ligeiro, voou ao encontro da sua amada. Juntos congeminaram um plano secreto em que ela choraria um rio de lágrimas na serra da Agra e ele outro no Alto de Morgair. Mais tarde, o rio do cavaleiro desaguaria discretamente no rio da cabreira numa longínqua propriedade para os lados de Santo Tirso, pela qual um leal amigo pagava Censos.
E foi assim, que no lugar do Censos, agora Cense, o rio Avicella do amantíssimo cavaleiro abraçou o rio Ave da cabreira e que, finalmente, a formosa cabreira e o garboso cavaleiro puderam viver felizes para sempre.
E foi assim, também, que este apaixonado abraço deu à luz a bela península de Entre os Aves, hoje apelidada de Vila das Aves, uma terra onde se enraizou um povo valente, trabalhador e honesto, de gente que faz presigo com as duras pedras que a vida lhe atira para o caminho. Gente que fez dela a sua terra do sempre.