[Crónica] Pela arquitetura vernacular: os caseiros de terras II

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

No último artigo sobre o presente tema, no passado mês de maio, explanamos as dificuldades com que muitos caseiros de terras do Entre-Douro-e-Minho se deparavam nas cláusulas dos contratos que firmavam com os seus senhorios. Aliás, recorde-se que, ainda na década de 1980, um tempo em que já escasseavam caseiros de terras, a palavra “senhorio” continuava a possuir uma carga quase-feudal. Lembro que, por cá, em muitas das conversas públicas sobre o assunto, na maior parte das vezes, o que estava sempre em causa, era o cumprimento dos direitos dos proprietários e, só raramente, o dos caseiros. Assim, naturalmente que, o período compreendido entre as décadas de 1960 e 1980, foi o tempo em que estes arrendatários fugiram das parcas condições que as quintas lhes ofereciam.

Como é sabido de todos, a maior parte destes agregados familiares tinha algumas características em comum: o casal possuía grande número de filhos que os ajudavam constantemente nos trabalhos agrícolas; por norma, o pai acumulava este trabalho com um emprego fabril, num turno de horário noturno ou só matinal; e a esposa era doméstica.

Muitas das casas-pátio que estavam disponíveis para os acolher já não tinham a dignidade e a salubridade que a sociedade entretanto começara a exigir: as cozinhas ainda eram “de fumo”, ou seja com fogueira na pedra do lar, sem qualquer forro no teto, com as águas do telhado constituídas unicamente pela armação de madeira e pelas telhas, com inúmeras frinchas para o fumo sair; as divisões destinadas a quartos de dormir eram sempre poucas e de área muito reduzida; a casa de banho não existia; e, dada a ausência de corredores, à porta das divisões anteriormente referidas, a convivência com os bichos e estrumes eram uma constante do quotidiano destas habitações.  

Assim, o “salto” para a França, a fábrica e a escola, retiraram, gradualmente, estas pessoas deste modo de vida, passando-se do tempo “dos caseiros sem terra” ao tempo “da terra sem caseiros”, umafraseque, João Castro Caldas, num artigo no livro “O Voo do Arado”, tão bem redigiu.

Lavra. Foto de Artur Pastor (1922-1999) consultada em 12 de julho de 2023 em https://arturpastor.tumblr.com/

Seguindo um antigo costume, os caseiros acertavam se entravam e saíam para as quintas pelo São Miguel, a 29 de setembro, dia da Feira Grande de Famalicão, que se realiza desde os inícios do século XIII, uma marca importante no calendário agrícola da região. Os que tinham que sair, depois desta data, ainda iriam secar os milhos e fazer as vindimas para encerrar as colheitas do ano agrícola. Noutros tempos, estes contratos eram apalavrados, não redigidos, e em caso de fim de contrato, o senhorio transmitia a intenção ao caseiro pelo São João, perante duas testemunhas. Nalgumas freguesias do Alto Minho podia ser denunciado no altar, pelo pároco, numa missa dominical. No entanto, ressalve-se que os maiores proprietários tinham preferência por contratos escritos e não se ficavam pelos costumes correntes, dada a quantidade de pormenores relacionados com as obrigações que os caseiros tinham que cumprir, algo que não era tão comum nas propriedades mais pequenas. Nesses contratos escritos, poderiam enumerar, por exemplo, as quantias de produtos hortícolas a fornecer ao patrão; as cabeças de gados, miúdos e graúdos, a manter; e definir um determinado número de cargas a levar com os carros de bois, entre outros serviços ou encargos.    

Nessas quintas maiores poderiam haver um ou outro caseiro que teria que manter, por exemplo, uma vaca para o senhorio. No entanto, por norma, o gado graúdo não entrava nos contratos. Acontecia, muitas vezes, que os caseiros pobres não tinham bois para trabalhar. Para tal, recorriam a uma espécie de aluguer destes animais, com a duração de um ano, a um negociante, e assim possuir a força motriz necessária ao amanho da quinta, num sistema por cá conhecido “a perca e ganho”. Para tal, o negociante trazia e avaliava os bovinos até ao caseiro, e atribuía-lhe o valor X. Logo aí, o negociante já tinha um lucro porque tinha comprado o animal noutro local, pelo valor Y, e avaliava-o aqui, acima dessa quantia.

Contudo, como a força animal era imprescindível para o amanho da quinta, e não a tendo, os caseiros sujeitavam-se a avaliações altas que nem sempre correspondiam à verdade. Assim, o lucro era, logo de antemão, para o investidor. A partir desse momento, o caseiro criava os animais e todo o lucro gerado acima de X era “a meias”, ou seja, de 50% para cada um. O animal, como tinha crescido e engordado durante um ano, no final do ciclo, era novamente colocado à avaliação do negociante que o levava para venda, avaliado “por baixo”, num processo idêntico ao inicial, mas de modo inverso. Este e outros processos fizeram dos negociantes de gado uma classe de gente endinheirada que se destacava entre as famílias de lavradores.

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