[Crónica] De quando por cá havia lobos

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

O fascínio pelos significados da toponímia é algo que une muitos dos amantes da história. Deslindar o porquê dos nomes das terras é uma atividade que se desenvolve ao longo do tempo mas que nunca se aprende dadas as muitas respostas inconclusivas. Em bastantes casos, as explicações para a razão de ser desses nomes são consensuais. Sabemos, por exemplo, que as Agras são campos ou que um Rebordão é um carvalho. Noutras situações, explicar o seu significado não passa de uma suposição. É o que acontece com o lugar do Monte do Fojo, uma pequena elevação, sobranceira à atual Estação Ferroviária de Caniços que na Baixa Idade Média se encontrava nos limites de três paróquias: São Martinho de Sequeirô; São Tiago de Almofães (depois, provavelmente, integrada em Sequeirô e Carreira); e São Félix de Almofães, posteriormente fundida com Santo Estêvão de Natal que, a partir do século XVIII, se designou como Santo Estêvão Fins de Riba de Ave e que ainda persiste na memória de muitos como a antiga freguesia de Sanfins de Riba de Ave, entretanto incorporada em São Pedro de Bairro por volta da charneira de 1900.

Lugares com o mesmo nome surgem também em São Tomé de Negrelos ou Santa Cristina do Couto. Este topónimo “Fojo” tem muitas interpretações. Apesar de poder significar “buraco”, “cova” ou “vigia” de uma mina ou um poço seco, pode também indicar uma armadilha comunitária com que se apanhavam bichos maninhos, em especial os lobos. Nas comunidades agro-pastoris das montanhas do Norte do Minho e Trás-os-Montes, alguns destes fojos funcionaram até à segunda metade do século XX. Grande parte deles consistia num grande muro em alvenaria, com formato em V que, no vértice final, possuía um fosso, também em alvenaria. Em datas pré-determinadas pelo ano ou quando disso houvesse necessidade, as populações saíam ao monte e, formadas em linha e em grande algazarra de petardos, cornetas, buzinas, tambores e latas, enxotavam os animais para o interior dos muros do fojo, encurralando os bichos até ao fosso, onde eram abatidos. Aliás, o realizador Hélder Mendes, em 1964, no episódio Uma Batida aos Lobos da série Desporto e Natureza da RTP, filmou esta prática na Serra Amarela, no Parque Nacional da Peneda-Gerês. Por vezes, quando alguém possuía um animal doente, colocava-o nesse fosso a servir de chamariz, na esperança de que algum predador aí caísse.

“O toponímio ‘fojo’, apesar de poder significar ‘buraco’, ‘cova’ ou ‘vigia’ de uma mina ou poço seco, pode também indicar uma armadilha comunitária com que se apanhavam bichos maninhos, em especial lobos”

A ambiguidade de admitir que no lugar, hoje limítrofe de Sequeirô, Bairro e Carreira, possa ter existido essa função venatória, não deixa de nos aguçar a curiosidade sobre os resquícios da presença de lobos nesta região, hoje relegada às montanhas mais a montante do rio Ave. De facto, elas existem e não são assim tão poucas. As Inquirições de D. Afonso III, de 1258, registam a obrigatoriedade dos habitantes de São Pedro de Riba de Ave efetuarem montarias aos lobos em todos os feriados da Quaresma[1]. Certamente que se fariam pela zona mais alta da freguesia, nos atuais montes de São Roque e do Penedo da Bandeirinha, estendendo-se também para a antiga freguesia de Santo André de Sobrado que hoje é pertença de São Miguel das Aves. Nesta vila, regista-se ainda o topónimo “Lubazim”, também ele ambíguo e incerto, mas que, entre outras interpretações, pode também ser compreendido como derivado de “lupucinus” equivalente a um diminutivo de “luparia” (lobeira), ou seja, um local com muitos lobos.

Em tempos mais recentes, em pleno século XIX, o Pe. Joaquim Antunes de Azevedo aponta também o costume de, na freguesia de Covelas, então do concelho de Santo Tirso, em dia de São Gonçalo se fazer uma montaria aos lobos[2]. No Livro IV das Atas da Câmara Municipal de Santo Tirso (1842-1850), relativo à sessão de 1 de agosto de 1844, são referidos pagamentos a dois habitantes da mesma freguesia de Covelas pela morte de lobos: um de 1200 reis, a Domingos de Oliveira, pela morte de um desses animais; e outro de 3600 reis, a Jerónimo de Sousa Marques, pela caça de outros quatro. O costume popular de oferecer recompensas pela morte destes predadores perdurou em muitas comunidades até 1988, ano da proibição da caça ao lobo. Quando alguém abatia um destes bichos circulava de porta em porta, exibindo a presa para receber donativos.

Na altura, o Decreto-Lei de 1990 chegou tarde. A espécie estava quase extinta em território nacional, resultado de um grande número de caçadores, envenenamentos sistémicos, batidas e armadilhagens. Ao contrário do javali, do corso e até do urso, o lobo nunca foi uma espécie venatória nobre, com direito a um defeso que acautelasse a sua reprodução. As ações predatórias das alcateias aos rebanhos fizeram dele um mal-amado da humanidade, cuja perseguição movimentou desde sempre todo o tipo de comunidades, classes sociais e autoridades administrativas. E isto aconteceu não só nos montes como também na construção de um imaginário vincado na tradição oral de lendas e crenças, que ainda hoje o define como besta surreal, símbolo das piores forças malignas mesmo que não haja registos de qualquer ataque de lobos a um ser humano na Península Ibérica.


[1] GONÇALVES, Iria – Por terras de Entre-Douro-e-Minho com as Inquirições de Afonso III. Porto: CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória» da FLUP/Edições Afrontamento, 2011. P. 136.

[2] AZEVEDO, Pe. Joaquim Antunes de – Memórias de Tempos Idos. Vol. I. Vila Real: Clube UNESCO da Maia, 2014. P. 209.

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