Nas últimas semanas, assiste-se na análise política à tentação de se adotar abordagens catastróficas para anunciar uma nova crise, repetindo frases prontas como “temos todos de fazer sacrifícios” e defendendo a “inevitabilidade”, implícita ou expressa, de que os trabalhadores e os mais pobres sejam convocados a suportar a maior fatia dos custos económicos e sociais, pois é “sempre assim”.
Se na crise financeira de 2007/2008, a resposta austeritária que lhe sucedeu foi justificada por uma narrativa de manipulação da sensação de medo e de culpa – recordada pela acusação de que “vivemos acima das nossas possibilidades” -, e em tempos da COVID-19 disseram-nos que “estávamos todos no mesmo barco” a enfrentar os efeitos da pandemia, agora é a guerra e a solidariedade com suas vítimas que é instrumentalizada para exigir “sacrifícios de todos”. E qualquer um que não afine pelo mesmo diapasão, defendendo alternativas à lógica do sacrifício, é rotulado de demagógico ou utópico.
O certo é que essa perceção dos efeitos das crises é constantemente desmentida pela própria realidade, traduzindo-se num mero engodo do capital. Entre o início da crise financeira de 2007/2008 e o final de 2013, em Portugal, o factor trabalho perdeu 3,6 mil milhões de euros, enquanto o excedente do capital engordou 2,6 mil milhões de euros. No período da Covid-19 foram acumulados fabulosos lucros de centenas de milhões de euros por parte de grandes grupos económicos da distribuição alimentar (Jerónimo Martins, Sonae…), da energia (GALP, REN, EDP), e do sector bancário (CGD, BCP, Santander, BPI, Novo Banco, Montepio), enquanto no mesmo período mais de 400 mil pessoas ficaram abaixo do limiar da pobreza. Observando-se os efeitos no resto do mundo, mais de 263 milhões de pessoas caíram em situação de pobreza extrema o ano passado, ao passo que a riqueza dos multimilionários aumentou mais nos primeiros dois anos da pandemia do que nos últimos 23 anos. Por fim, no presente ano, regista-se uma inflação galopante que não é acompanhada por igual aumento dos salários, apesar de um crescimento da produtividade, adivinhando-se a maior transferência de rendimento do trabalho para o capital a que já assistimos em Portugal no século XXI.
“A leitura totalizante que subsume as consequências das crises ao preconceito de que “todos temos de fazer sacrifícios”, conduz sempre a um processo de reforço da transferência de rendimento do trabalho para o capital”
Como vemos, a leitura totalizante que subsume as consequências das crises ao preceito de que “todos temos de fazer sacrifícios”, conduz sempre a um processo de reforço da transferência de rendimento do trabalho para o capital, escondendo as consequências provenientes de uma distribuição desigual de recursos económicos, políticos e sociais, bem como os interesses antagónicos entre classes. Ao mesmo tempo, a retórica moralista que a acompanha visa ocultar o facto de que as crises que irrompem uma após outra são resultado do próprio processo de acumulação capitalista, sendo “endógenas e endêmicas” ao seu modo de produção. Ao serem interpretadas como uma inevitabilidade decorrente de causas naturais ou como meros acidentes de percurso, pretende-se legitimar os sacrifícios de uma maioria em detrimento de uma minoria que sai sempre beneficiada de todos os momentos do sistema capitalista, até nas crises.
Ora, um sistema que, de crise para crise, apenas oferece o rebaixamento das condições de vida de uma maioria, designadamente aquela que produz a riqueza social, cada vez mais apropriada por uma minoria, ampliando as desigualdades e o desequilíbrio econômico entre grupos e classes sociais, deve interpelar todos aqueles que não se resignam perante resultados irracionais em face das necessidades e potencialidades das sociedades.