[Entrevista] João Filipe: “Escrevo para tentar agarrar os momentos que fogem”

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João Filipe é o pseudónimo literário de Joaquim Moreira cujo novo livro, “Regresso a Ítaca”, tem apresentação agendada para o dia 9 de junho, no Centro Cultural Municipal de Vila das Aves. Autor fala do processo de despojamento da poesia e da sua “Odisseia” que revisita em verso.

É sempre entre livros que leva a sua vida. É entre as estantes e as páginas infindáveis que se move, sem medo de afirmar que “se há coisa que a Vila das Aves se pode orgulhar é da biblioteca”. João Filipe é o pseudónimo literário de Joaquim Moreira, bibliotecário da do Centro Cultural Municipal de Vila das Aves e responsável pelos hábitos de leituras de várias gerações de avenses.

Ao sexto livro, diz que a sua poesia está num processo de despojamento face ao torrencial “eu” da literatura ocidental, indo buscar refúgio na essência poética que a brevidade de um haiku permite. Em “Regresso a Ítaca” vai em busca dos seus primórdios, qual Ulisses, retornado da “Odisseia”.

O título do livro remete para um universo clássico. Este “Regresso a Ítaca” é, afinal, um regresso a quê?

Eu recorro à “Odisseia” como um regresso à infância, às minhas primeiras leituras e ao meu primeiro universo poético. Há um poema do Kaváfis que cito no livro em que fala do regresso de Ulisses a Ítaca, depois da “Odisseia”, vinte anos após ter partido, onde ele refere que o mais importante é a viagem. Neste caso, o regresso não é propriamente sobre Ítaca, mas sim sobre tudo o que fui aprendendo na minha “Odisseia”: na infância, na juventude, nas minhas leituras, até que chego aqui, aos últimos poemas, “ao sopro”, a súmula de tudo o que passei até agora. Um breve murmúrio que tudo resume.

“Comecei a descobrir a poesia de uma forma muito mais despojada, algo muito mais breve, com três ou quatro versos que quase não conseguimos apanhar. Isso enche-me a alma”

Perante essa ideia de viagem e de regresso. O que vê o João Filipe do parapeito da sua janela quando olha para trás?

Comecei a publicar relativamente jovem, no seminário ainda. Tinha muitos cadernos e diários poéticos, concorri aos jogos florais e este pseudónimo surge precisamente desse tempo. Tinha um certo pudor de escrever poesia e quis ter essa distância. Um dia estava a ler o poeta cabo-verdiano Daniel Filipe, que tem um poema belíssimo chamado “A Invenção do Amor”, e acabei por escolher este nome inspirado nele.  

Mas é um olhar nostálgico, agridoce ou azedo?

Também é nostálgico. Curiosamente, a segunda parte do livro foi escrita já há alguns anos. Não é novo. E essa, sim, era um bocadinho nostálgica, mas agora já está um pouco distante de mim. Comecei a descobrir a poesia de uma forma muito mais despojada, algo muito mais breve, conciso, com três ou quatro versos que quase não conseguimos apanhar. Isso enche-me a alma.

A outra parte já está distante, mas tem esse olhar um bocadinho nostálgico, embora saiba que aquilo que estou a escrever agora veio de lá. Todos estes elementos sobre os quais estou a escrever agora, recolhi-os de lá, guardei-os, foram crescendo de uma forma ou de outra e floresceram.

É curioso que estas duas partes surjam no livro ao contrário da sua ordem cronológica.

Eu batalhei muito com essa decisão. Este livro estava pronto há dois anos e tive imensas dúvidas sobre o que surgiria em primeiro plano. Dois anos é muito tempo. Tive muito trabalho, muitas correções, avanços, recuos e foi o José Carvalho que me aturou durante todo esse tempo. Tenho-lhe uma dívida de gratidão enorme. A ele e à Tatiana Bessa que fez a revisão do livro.

Possivelmente deveria ter feito ao contrário, por registo cronológico. Não sei. A primeira ideia era que o título fosse “O Sopro”, porque o meu processo tem sido de despojamento. A poesia ocidental está demasiada focada no “eu”, há um torrencial de “eus” por aí fora. Na poesia oriental vemos a essência poética. É mais sobre o que fica por dizer, do que por aquilo que diz.

A própria linguagem poética transforma as reflexões mais pessoais em algo inerentemente universal.

O máximo que posso tentar universalizar é a minha experiência, a brevidade, a impermanência das coisas. A poesia é isso, não pode ser agarrada. Eu não sei se terá alguma mensagem. Acho que não tem mensagem nenhuma. É uma reflexão sobre mim próprio, mas também sobre o que entendo da vida das pessoas. Poesia vai à procura daquilo que é inapreensível.

“O Regresso a Ítaca não é propriamente sobre Ítaca, mas sim sobre tudo o que fui aprendendo na minha ‘Odisseia’: na minha infância, juventude e primeiras leituras”

A biblioteca é a tua casa há muitos anos. Numa sociedade que tem tudo à distância de um clique, ainda fazem sentido?

Para mim, sim, mas sou suspeito. Sou um leitor voraz, mesmo que agora leia muito menos. Pelo menos, leio mais devagar. Demoro mais tempo a digerir. Ando com os livros muito mais tempo comigo.

Claro que para mim, as bibliotecas têm todo o espaço possível e imaginário. Eu cresci com a biblioteca, continuo a viver a partir dos livros e da biblioteca, portanto para mim é importante, agora se para os outros vale a pena, talvez não seja tanto. A minha universidade foi a biblioteca da Gulbenkian na junta de freguesia. Se há coisa que nos podemos orgulhar aqui nas Aves é da biblioteca.

As bibliotecas continuam a ter a sua função e a fazerem-se descobertas incríveis. É um espaço que indica caminhos e esse é um trabalho que gosto muito de fazer. É difícil recomendar livros a alguém que não tem hábitos de leitura e não sabe por onde começar, mas às vezes basta um livro para levar ao segundo e ao terceiro, por aí fora. Foi assim que todos começamos. É infindável. Para mim, basta conseguir isto com um miúdo que já vale a pena.

Termino com uma pergunta impossível de responder. Por que escreves?

Já tive mais necessidade do que tenho hoje. Porventura não teria publicado tanto quanto publiquei. Não escrevo por qualquer glória póstuma, mas sinto-me bem. É apenas um prazer. Tento agarrar os momentos que fogem. É uma tarefa impossível tentar agarrar coisas tão fugazes como memórias. É a minha forma de fixar aquilo que considero belo. Momentos tão breves e fugidios que são impossíveis de agarrar, mas que eu tento guardar através dos versos.

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