[Editorial] Quem vigia os vigias?

CRÓNICAS/OPINIÃO Diretor

A comunidade económica desenvolvida após a segunda guerra mundial e que deu mais tarde origem à União Europeia tinha como visão fundamental acabar com os conflitos entre países vizinhos que, ao longo de séculos, alimentaram guerras sucessivas.

A primeira guerra mundial tinha acabado numa humilhação dos vencidos e estes, levantando-se economicamente e adotando ideais de supremacia e dominação, provocaram uma guerra ainda mais trágica e destruidora e ainda mais vasta em nações empenhadas e em cidades e territórios completamente destruídos.

A Organização das Nações Unidas nasceu também no rescaldo da segunda guerra. O seu documento fundador, a Carta das Nações Unidas começa assim: Nós, os povos das Nações Unidas, decididos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade (…) e para tais fins a praticar a tolerância e a viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos, a unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, resolvemos conjugar os nossos esforços para a consecução desses objetivos.

A evolução da invasão pela Rússia do território ucraniano mostra bem quanto foram esquecidos os fundamentos e as razões da carta da ONU e, fundamentalmente, quanto foi esquecida a guerra.

O Tribunal Internacional de Justiça é um instrumento da ONU e, em relação à queixa da Ucrânia, que pedia a condenação da Rússia pela invasão injustificada, decidiu, por sentença conhecida no dia 17, que a Rússia devia suspender imediatamente as operações militares na Ucrânia. Viu-se como não aconteceu. E o tribunal não dispõe de força policial para fazer cumprir a sentença: o país ofendido pode recorrer ao Conselho de Segurança, onde a Rússia tem poder de veto e pode bloquear qualquer iniciativa.

Infelizmente, a Organização das Nações Unidas está a mostrar a sua incapacidade para lidar com a situação atual: o poder de veto de alguns países fez deles os “vigias” do sistema. E, quem vigia os vigias? O desmesurado poder de destruição do ocupante paralisa a intervenção de outros que, mesmo que possam dispor de idêntico poder para se opor, não arriscam entrar em ação.

“Triste sina a dos ucranianos: obrigados uns a fugir duma guerra iníqua e outros a lutar na sua pátria pelo reconhecimento dos seus direitos fundamentais”

Américo Luís Fernandes (Diretor)

A ONU aprovou em 1948 a Declaração Universal dos Direitos Humanos e nela se inscreve que “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” e que “a vontade do povo será a base da autoridade do governo”.

A Rússia foi um dos vencedores da segunda guerra mundial e um dos mentores da ONU. Mas ao ver desmantelada a sua União Soviética e consumada a perda de influência geopolítica na região, ao invés de inclinar-se para um sistema político de eleições periódicas e legítimas, nos termos da Declaração de Direitos Humanos que aprovou, dá oportunidade ao desenvolvimento de um regime totalitário que espezinha os direitos fundamentais que a nação ajudou a assentar, procurando retomar um império perdido. Estão de volta os ideais de supremacia e dominação, o ciclo repete-se.

Tal como Hitler, ao desencadear a guerra, ditou a dissolução da Sociedade das Nações que surgiu no final da primeira guerra mundial com o intuito de manter a paz, fica a ONU suspensa do desenrolar desta guerra de Putin, que não foi capaz de evitar. Triste sina a dos ucranianos: obrigados uns a fugir duma guerra iníqua e outros a lutar na sua pátria pelo reconhecimento dos seus direitos fundamentais. Triste sina a dos russos, impossibilitados de decidir, pela vontade do povo, a quem entregar a liderança da nação. Triste sina a de toda humanidade que não vê serem assumidos na plenitude os direitos humanos e os compromissos de manutenção da paz.

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