Raskólnikov havia concretizado o crime que tanto premeditara. Nem tudo correu conforme planejado, mas aparentemente saiu incólume. Ninguém o vira a assassinar duas pessoas, ninguém podia suspeitar dele.
A personagem de Dostoiévski encontra-se então aparentemente safo de tribunais e castigos. No entanto não se consiga desenvencilhar de uma punição inesperada. Um castigo que se materializou numa tormenta insuportável. O da sua própria consciência.
Dias e noites a fio, Raskólnikov via-se assoberbado pelo seu ato. Mal dormia, mal se podia concentrar noutras coisas. A personagem de Crime e Castigo descobria assim que o Inferno por vezes se encontra dentro de nós. Nós temos os nossos próprios mecanismos de correção, cujo efeito punitivo pode ultrapassar o dos outros. Seja a vergonha, ou no caso mais extremo o remorso e sensação de arrependimento.
Rakólnikov escapou a testemunhas oculares, polícias e tribunais, mas acabou preso no tribunal da sua própria consciência. No final, acabou por preferir entregar-se e cumprir pena de prisão a ter de viver, isolado, com a culpa.
Putin invadiu a Ucrânia. Gravita acima de tribunais e polícias (manda neles). O sangue que tem nas mãos é imune a todos os castigos. A pergunta que fazemos a nós próprios é que como Putin consegue dormir à noite.
“O caso de Raskólnikov dá alguma esperança à humanidade. Lembra-nos que há limites para o mal que aguentamos infligir aos outros. Putin contraria essa tese, lembra-nos que o mal radical afinal é possível.”
Hugo Rajão
O seu conterrâneo, embora fictício, Raskólnikov quis assemelhar-se a Napoleão, mas ao invés encontrou no fim do seu crime a sua própria fragilidade. Será em Putin o complexo de Deus exacerbado ao ponto de encontrar no seu móbil, justificação para a barbárie, sem que a sua consciência trema? É possível ficar indiferente perante o sofrimento e a morte de ucranianas e ucranianos, cuja única falha é aspirar a existir e viver com alguma paz e conforto, como todos nós?
A distinção entre Raskólnikov e Putin não diz respeito ao binómio inocente/culpado. Ambos são criminosos. O que os distingue é o facto de Raskólnikov não conseguir lidar com os seus atos. É o facto de o primeiro não conseguir dormir em paz.
O caso de Raskólnikov dá alguma esperança à humanidade. Lembra-nos que há limites para o mal que aguentamos infligir aos outros. Putin contraria essa tese, lembra-nos que o mal radical afinal é possível.
Mas não perdemos, contudo, a fé da humanidade. O outro lado do mal radical é a compaixão, o amor, a solidariedade. E estes têm sido manifestados massivamente por nós. O outro lado do mal radical é a revolta. É o grito de não admissão à subalternidade perante o outro, por mais assimétricas que as forças sejam. E isso os ucranianos têm-no feito de forma heroica e contra todas as previsões.
A barbárie voltou a instalar-se entre nós. A Ucrânia está ferida e nós choramos convosco. Somos filhos da mesma condição, da mesma contingência que nos colocou no mundo.
Viva a resistência!