[Retrospetiva] Maria Martins luta para que o futuro não lhe escape

ATUALIDADE DESTAQUE

Em semana de protesto global contra as alterações climáticas, o Entre Margens foi conhecer uma jovem ativista que, a partir da sua escola, seguiu o exemplo de Greta Thunberg e luta por um futuro cada vez mais em risco. [original – 26 setembro 2019]

Há um cheiro a revolução no ar. Daquelas que acontecem uma vez e alteram por completo hábitos, modos de vida, modelos de sociedade. Sente-se nas ruas, na arte, na política, num simples passeio pelo campo ou numa qualquer cidade. Ela está por todo o lado. Será que o mundo está preparado para a ouvir e agir em conformidade?

Pelos dias que correm, a revolução ‘verde’, a luta contra as alterações climáticas e pelas problemáticas ambientais é o tema dominante. Deixou de ser um cavalo de batalha dos hippies ou de uns freaks das franjas da sociedade. As consequências de décadas de negacionismo estão aí, sem que seja possível desviar o olhar.

A ciência é clara e tem-no sido nas últimas três décadas, só que agora existe um relógio que caminha inexoravelmente para um abismo desconhecido. O ano de 2016 foi o ano mais quente desde que há registos, sendo que os últimos quatro anos ocupam os quatros primeiros lugares da tabela. O mesmo é visível quando se olha para os níveis da água do mar, do degelo polar e os níveis de dióxido de carbono na atmosfera. Um panorama que leva os cientistas a apontar o ano de 2030 como ponto de não retorno.

Em agosto de 2018 uma solitária adolescente sueca fazia notícia pela greve às aulas que a levou em protesto até às portas do parlamento sueco. O objetivo de Greta Thunberg era simples, alertar para as alterações climáticas. Dizer basta!

Um ano depois, como diz Lin-Manuel Miranda no seu hino revolucionário “My Shot” do musical “Hamilton”, a “faísca transformou-se em fogo”. A greve solitária da jovem de 15 anos transformou-se num movimento global que ocupa cidades inteiras em torno de uma mensagem a um pulmão só.

“Isto não apenas um momento. É o movimento onde todos os irmãos com algo a dizer se juntam”, continua, a certa altura, a mesma canção. É isto que se sente no ar. A inevitabilidade de que algo precisa de mudar permanentemente. A história está nas mãos do futuro.

Lutar pelo planeta, uma escola de cada vez

“Agir local, pensar global” é uma velha máxima do ativismo que ao longo das décadas tem inspirado o trabalho de milhares de organizações indivíduos pelo mundo fora. É o exemplo que Greta Thunberg está também a transmitir a cada jovem que não se sente representado, que sente a sua voz perdida e o futuro a escapar-lhe.

Maria Martins tem 16 e está agora no 11º ano de escolaridade na secundária D. Afonso Henriques. Diz-se uma “Greta”, parte integrante da geração que despertou para a luta mais séria das alterações climáticas através do exemplo da jovem sueca. Não come carne há mais de um ano. Fez greve, participou na marcha pelo clima de 15 de março na cidade do Porto e está a trilhar o seu caminho cartaz a cartaz, ação a ação.

Em conversa com o Entre Margens, Maria Martins diz que não gosta de rótulos. Não se considera uma ativista, nem uma pessoa especial. Sente-se como uma pessoa comum que se preocupa com futuro da ‘nossa casa’.

“Eu simplesmente tento fazer aquilo que posso e está ao meu alcance. Tento chamar a atenção das pessoas, consciencializá-las. Não acho que seja nada do outro mundo. Ser ativista também não é nada do outro mundo. Não preciso de me rotular para agir como acho que seja mais correto, porque há muita gente que se autointitula e depois não faz nada”, revela a jovem.

Maria já se interessava por temáticas de recorte social e progressista, como a igualdade de género e mesmo o ambiente, e foi numa das suas pesquisas que descobriu as ações de Greta Thunberg. “Revi-me nela”, diz. “É uma miúda como eu, da minha idade, que pensa e se preocupa com as mesmas coisas. É inspiradora.”

Inspiradora porque, argumenta, “nunca teve medo de tomar a iniciativa, não teve medo de quem lhe fosse fazer frente. O facto de mostrar emoção, algo que falta aos políticos de hoje, também é importante porque mostra a inocência de alguém que ainda não foi corrompida pelo mundo.” Um sentimento de esperança e possibilidade que se espalhou por milhares de jovens de todo o mundo numa era repleta de Trumps e Bolsonaros.

“Se ela usou a sua voz, nós também podemos usar a nossa. Não importa a idade, não importa a situação em que esteja. Ela faz-me sentir empoderada.”, sublinhou.

A questão climática entrou de rompante na atualidade mediática desde a canonização pública de Greta Thunberg e o efeito que tem tido nas camadas mais jovens da população tem sido extraordinário. Mas porquê só agora? Porque demorou trinta anos de avisos para que finalmente a emergência climática pareça real o suficiente para levar uma grande franja da população a agir?

Para Maria Martins, “as pessoas estão habituadas à comodidade, estão habituadas a deixar tudo para amanhã e a não pensar nas consequências dos seus atos, sobretudo no ambiente”, porque os efeitos não são imediatos.  

“Como as consequências das suas ações não são visíveis, deixa-se andar. Estamos habituados a ter tudo muito rápido e nunca vemos como as nossas ações impactam o ambiente, porque a escala é outra, não faz parte do nosso quotidiano. Mas se olharmos em grande plano, está tudo a acontecer”, explica Maria Martins.

Daí que seja importante começar por aquilo que cada um consiga controlar, até para criar uma sensação de responsabilidade e pertença ao movimento. Mas sobretudo, iniciar a conversa e consciencializar as pessoas para a realidade. Começar pela família, pelos amigos e partir daí.

“Deixei de comer carne e produtos laticínios, pedi aos meus pais para fazer algumas mudanças lá em casa, estar atentos nas compras de certos produtos, mas o mais importante neste momento é mesmo consciencializar o máximo possível as pessoas”, até porque, garante, esta não é uma questão tão geracional como pode parecer.

“Ainda há muito desinteresse da malta da minha idade e depois encontro pessoas com mais de 50 anos que mudaram os seus hábitos de vida de um dia para o outro. Por outro lado, também conheço professores que são muito céticos em relação às alterações climáticas”, assinala.

A escola que deve ser um meio privilegiado para a educação ambiental, no entanto, está longe de ser um paraíso progressista e revolucionário. É mais um espelho da sociedade, onde o comodismo e desinteresse impera na maioria. Aquando da primeira greve, em março, Maria Martins apercebeu-se da falta de informação sobre as questões climáticas pelo recinto escolar. Foi ter com a diretora que a direcionou para a associação de estudantes.

“Tentei falar com eles, mandei-lhes várias mensagens. Primeiro, ignoraram-me completamente. Eu insisti. Quando finalmente me responderam disseram que iam averiguar. Ora, isto cerca de dois dias antes da marcha”, conta a jovem, na altura ainda no 10 º ano de escolaridade. “Ora, a resposta da associação de estudantes ao meu apelo foi fazer uma publicação nas ‘stories’ a avisar da marcha. Ainda por cima nas ‘stories’! Nunca mais me disseram nada.”

Um episódio que serve de metáfora para a forma como o cidadão comum lida com as alterações climáticas. Primeiro não percebe, faz uma pesquisa rápida e fica satisfeito quando faz o mínimo possível. “Vivemos num mundo tão hipócrita, de pessoas que não querem saber e depois para ficar bem nas aparências, fingem que se importam”, desabafou.

Maria Martins conseguiu levar consigo sete colegas de turma à marcha pelo clima de 15 de março, na cidade do Porto. “Fomos as únicas da nossa escola que fomos à marcha, mas sei que houve muita gente que faltou só por faltar.”

O grupo de oito amigas, de cartazes embrenhados, aventurou-se pelo Porto e juntou-se aos milhares de estudantes que se manifestavam em frente à câmara municipal. “A minha sensação quando lá cheguei foi ‘ok, isto é a sério!’”, descreve Maria Martins. “Deu para perceber que afinal não era só eu que estava a lutar. Que havia muita gente que tinha estas ideias e estava disposta a tomar uma posição. Estivemos horas em frente à câmara do Porto a gritar, a lutar e a suar num calor imenso.”

Na escola secundária D. Afonso Henriques as suas ideias consideradas “radicais”, facto que a deixa incrédula, já lhe são reconhecidas. Vai integrar a associação de estudantes este ano e espera poder trazer as questões ambientais para a frente da discussão.

Esta sexta-feira, dia 27, vai voltar a juntar-se à luta para mais uma greve e marcha pelo clima. Em março, pôde ver “todas as Gretas portuguesas” em ação e sentiu-se em comunhão. “Costumo ser um bocado envergonhada a gritar, mas naquele dia gritei como nunca. Ninguém me podia calar. E hoje, ninguém me pode calar.”

Que caminho para a luta pelo ambiente?

A luta nas ruas não promete parar enquanto não forem encontradas soluções definitivas a longo prazo o que, lendo nas entrelinhas da cimeira pelo clima da ONU, a decorrer em Nova Iorque esta semana, parece estar para durar.

Na segunda-feira, Greta Thunberg proferiu aquele que porventura será o soundbite da cimeira, dirigido aos líderes políticos presentes. “Como se atrevem fingir que isto pode ser resolvido com os negócios do costume? Não vos vamos deixar fugir desta forma. O mundo está a acordar quer gostem, quer não.”

Hugo Rajão é doutorando em Filosofia Política na Universidade do Minho e, contactado pelo Entre Margens, diz que há várias questões em jogo neste momento. O problema das alterações climáticas surge como grande tema da agenda mediática e política porque, primeiro, “há uma razão objetiva e factual: as alterações climáticas existem, são reais e ameaçam o futuro da humanidade. Um futuro breve.”

Depois, continua, “há uma questão geracional, porque há uma nova geração que está a enfrentar este problema de uma forma que os nossos pais não o fizeram, até porque estavam preocupados com outro tipo de questões sociais.”

No entanto, no seu entender, a discussão mediática em torno do ambiente surge de uma terceira problemática. “Há também uma questão menos racional, que até pode ser perigosa na forma como lidámos com o problema, que tem a ver com o modo como lidámos com a informação”, assinala o especialista.

A rapidez da informação, a forma como a consumimos em trechos, muitas vezes fora de contexto, o apelo à emoção, distorce o discurso sobre as questões que, neste caso, são demasiado importantes.

“Não são as ações em si que estão em causa, não é o ativismo, mas a forma como recebemos e apreendemos o que está em causa, e como reagimos a isso. Estamos a fazer um diagnóstico correto do problema, onde se combatem posições anticientíficas, mas vejo muitas dessas pessoas, paradoxalmente, a enveredar por soluções cuja validade científica também está por demonstrar”, aponta Hugo Rajão.

Confundem-se medidas simbólicas e atos individuais, que têm o seu valor, com a discussão mais larga sobre problemas de fundo e as respetivas soluções que são muitas vezes demasiado complexas para serem digeríveis pela opinião pública.

“Por exemplo, as palhinhas. Há um problema com o plástico, mas se calhar em Portugal há um problema energético muito mais grave com as casas das pessoas, ou problemas da própria indústria que mereciam políticas públicas mais complexas e estamos a direcionar tudo para pequenos comportamentos individuais”, aponta o investigador na Universidade do Minho.

Então qual é a solução para esta encruzilhada política e para esta emergência climática? Será necessário reinventar o modelo económico e social? Criar algo a partir do zero? Adaptar modelos existentes a uma nova realidade ambiental?

“O André Silva, do PAN, em entrevista ao Pedro Santos Guerreiro, disse que quer o capitalismo, quer o socialismo, têm como base um modelo extractivista-produtivista e o problema está aí. Tem razão, porque qualquer modelo económico extrai, transforma e distribui recursos. As diferenças entre esquerda e direita estão no processo. A minha pergunta é, então qual o modelo? Vamos voltar a ser recolectores? Ele também não tem resposta”, diz Hugo Rajão.

Este nó político fica ainda mais complexo quando se juntam a equação outras lutas sociais mais tradicionais. “Se a luta pela justiça social, num paradigma cada vez mais enviesado para o neoliberalismo está no estado que se vê, então conseguir justiça social e climática ao mesmo tempo será ainda pior”, refere.

No entanto, estas questões estão todas intimamente relacionadas. Pobreza, raça, género, ambiente, a luta por qualquer uma delas não pode ser fechada numa bolha. A solução terá de ser muito mais abrangente.

“A questão ambiental foi negligenciada durante muito tempo. O meu medo é que se caia em alguma precipitação” naquilo que são as soluções, mais ou menos radicais, que se apresentem para resolver os problemas, avisa Hugo Rajão.

O relógio está a contar. Apressem-se.

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