“Dois homens batem à porta. ‘Bom dia, minha senhora, viemos para instalar o medo. E, vai ver, é uma categoria’.” Rui Zink, A Instalação do Medo, 2012.
O medo que, desde sempre, andou a par e passo com a política, assumiu papel de destaque nas últimas semanas, após anúncio da oposição do PCP, face à proposta de orçamento apresentada pelo governo.
Desta feita, o medo foi instalado pelo presidente-comentador, que se apressou a acenar com o isco da “crise política”, tão apetecível aos fazedores de opinião que pontificam na nossa praça. Seguiu-se a repetição até à exaustão dos seus presumíveis efeitos, antecipando vencedores e vencidos, e fabricando-se as intenções de quem ousa fazer frente ao “extremismo do centro”. O prenúncio da “crise política”, ao assumir contornos de disco riscado, amplificado pela incerteza dos efeitos da pandemia, serve de manobra política de chantagem, na esperança de que fosse garantida a aprovação de um instrumento essencial à governação sem discutir seriamente o seu conteúdo.
Porém, não obstante o contravapor daqueles que, servindo-se do estatuto de correias de transmissão da “opinião pública”, mais não fazem do que agitar espantalhos ou fazer futurologia, o certo é que existe um país real que precisa de respostas concretas, e não de adiar o que é inadiável.
Um país em que as famílias suportam 1/3 do financiamento total da despesa com saúde, em contraste com apenas 27% na média da OCDE. Com uma população envelhecida em que as doenças crónicas são responsáveis pela maior parte das mortes e da utilização de cuidados de saúde. Exige, antes de mais, a valorização das carreiras e remunerações dos profissionais de saúde, que contribua para a sua fixação e dedicação plena ao SNS, de modo a assegurar uma rede de cuidados de saúde de proximidade, adequada às necessidades.
“O prenúncio da “crise política”, ao assumir contornos de risco riscado, amplificado pela incerteza dos efeitos da pandemia, serve de manobra política de chantagem, na esperança de que fosse garantida a aprovação de um instrumento essencial à governação sem discutir seriamente o seu conteúdo”
João Ferreira
Um país em que 9,5% da população trabalhadora é considerada pobre, pois vive com rendimentos inferiores a 540 euros mensais. Em que mais de 1,5 milhões de pensionistas recebem uma pensão, de velhice ou invalidez, inferior ao salário mínimo nacional (SMN). Exige, como resposta, um aumento geral dos salários, especialmente do SMN para os 850 euros no curto prazo, assim como a valorização das pensões e o fim dos cortes que persistem no valor das pensões nas longas carreiras contributivas.
Um país que tem apenas 14% da população com menos de 15 anos. E onde ter filhos constitui um factor de pobreza, com quase 40% das famílias compostas por 2 adultos e 3 ou mais crianças em risco de pobreza, tem de avançar, decisivamente, para a criação de uma rede pública de creches, de acesso gratuito para todas as crianças.
Em que por força da liberalização do mercado de arrendamento, a percentagem de arrendatários com sobrecarga das despesas de habitação passou de 17,6% em 2010 para 25,8% em 2018. E em que o peso da habitação pública é de apenas 2%, enquanto a média na UE é de 8,3%, atingindo mais de 30% na Holanda, por exemplo. Precisa, pois, de duplicar o número de fogos de habitação pública, de revogar a Lei das Rendas, regular preços e dar estabilidade aos contratos de arrendamento.
E, por fim, em que o peso dos salários somente corresponde a 35% da riqueza nacional e os rendimentos de capital já atingem 41%, enquanto em 1975, 59% da riqueza nacional correspondia a salários e 24,3% eram rendimentos de capital, deve avançar no combate da precariedade e na promoção da contratação coletiva.
É este o caminho que merece ser debatido.