Duas propostas que também refletem o lado negro da indústria têxtil.
O processo de industrialização do Vale do Ave trouxe muitos benefícios às populações que aqui viviam e que por cá se instalaram em consequência da atração económica gerada pelo fabrico de tecidos. Da nascente à foz do Ave e do Vizela, há centenas de milhares de pessoas que partilham e divergem em muitas opiniões sobre o que são e foram as mais-valias industriais. No entanto, quase todos somos simpatizantes de um pequeno clube que já acumulou glórias futebolísticas nas competições profissionais; todos vivemos em localidades onde não faltam bustos e placas com nomes de empreendedores industriais que recheiam praças, rotundas, avenidas e jardins; somos conscientes que até temos oportunidades e emprego à nossa volta porque pertencemos a uma das áreas com mais indústria por km2 do país e da Península; percebemos que habitamos uma área geoestratégica com estradas, vias rápidas, autoestradas, comboios e autocarros; e todos sabemos outras tantas coisas que são tão óbvias que nunca recordamos nem enumeramos. Podemos chamá-las de apagões da nossa memória coletiva. Veja-se o exemplo dos rios. Como humanos que somos, gostamos do rio da nossa aldeia. Todavia, não apreciamos nada do que vemos… no rio da nossa aldeia. Por isso, durante décadas, vivemos numa amnésia coletiva, esquecendo… o rio da nossa aldeia. Já ninguém questionava ou refletia sobre os cursos de água. Só quando as autoridades administrativas transformaram e urbanizaram uma parte das margens destes rios, é que os recordamos e valorizamos novamente.
“Foram o braços das nossas bisavós, nos seus teares, os principais patrocinadores que levaram o filho do Conde Vizela, Nicha Cabral, a participar na fórmula 1? Alguém questiona porque ainda existe uma placa que proíbe a mendicidade às portas de Vila das Aves”
Napoleão Ribeiro
Tal como a restituição dos rios às populações, existem trabalhos que reabilitam as memórias menos simpáticas da industrialização. Refletir sobre a identidade das mãos daqueles que, verdadeiramente, constituíram a estátua do industrial A ou B, é tarefa impossível. Foram os braços das nossas bisavós, nos seus teares, os principais patrocinadores que levaram o filho do Conde Vizela, Nicha Cabral, a participar na fórmula 1? Alguém questiona porque ainda existe uma placa que proíbe a mendicidade às portas de Vila das Aves? Além destas ou de outras perguntas, continuamos a não refletir sobre as condições de habitação das ilhas e bairros operários das nossas vilas e freguesias, dos castigos e multas que as empresas de outrora aplicavam aos seus trabalhadores, dos abusos hierárquicos e sexuais, dos atentados à honra e ao bom nome dos funcionários. É normal que assim seja. É mais simpático preencher a memória com coisas boas. Contudo, aprender com as coisas más é não as repetir. Assim, conhecê-las melhor não é um apelo para uma visão do caos, mas sim uma tomada de consciência de algumas das realidades que aqui se viveram e ainda perduram.
Sobre estes assuntos, existem dois trabalhos sobre a realidade industrial no concelho de Santo Tirso que aconselhamos ao leitor. O primeiro trata-se de uma publicação de 2016, editada pelo Le Monde Diplomatique, resultado de um trabalho de campo realizado numa fábrica do nosso concelho, intitulado “Do Operário ao Artista – uma etnografia em contexto industrial” da autoria de Mariana Rei, uma antropóloga da Universidade Nova de Lisboa. O trabalho baseia-se num conjunto de entrevistas realizadas a antigos trabalhadores dessa empresa assim como aos técnicos e gestores que lideraram a desindustrialização desse complexo fabril.
O segundo trabalho é uma peça audiovisual do Projeto Cardo, realizada em Santo Tirso e Vila das Aves em 2020 e 2021. Tem estreia marcada na Fábrica de Santo Thyrso no próximo dia 8 de dezembro, às 18h. O trabalho recorreu à música, à dança, às histórias de vida e às paisagens fabris do Ave e do Vizela para contar a percurso de uma mulher de fábrica lutadora. Chama-se Eulália e, como todas as outras, nunca saiu do anonimato.