[Crónica] Os Zés Pereiras de Delães

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

Delães, tal como Vila das Aves, Riba de Ave, Oliveira de São Mateus, Rebordões e Bairro, é uma das freguesias que constitui um dos núcleos fabris mais importantes da têxtil do Vale do Ave. Dado o impacto que a industrialização teve nestes locais, geralmente desassociamos este território de tradições importantes para a cultura popular. No entanto, em Delães, um núcleo considerável de tocadores de gaitas-de-fole, clarinetes, caixas e bombos tem dado sequência a uma das práticas musicais mais singular do país: as charangas de zés pereiras. Entre edifícios, em perpianho granítico, das ilhas e bairros operários, das antigas instalações do Sindicato Têxtil e de fábricas como as Sedas Íbis, a Fiação de Tecidos ou a Sacramento Têxteis, entre outros, continua a ouvir-se um som que, por norma, associamos mais à pastorícia e às zonas rurais do país. 

 Além de Delães, nos territórios das margens do Ave, especialmente nas freguesias compreendidas entre Guimarães e Riba de Ave, existem vários costumes que usam grupos de tamborileiros informais. Na sua essência, não diferem muito das celebrações transmontanas associadas ao solstício de inverno e às comemorações da Natividade. Tudo começa com os estrondos de caixas e bombos da festa do Pinheiro e que dispensam aqui apresentações. Depois, as novenas das Festas ao Menino que ainda se realizam amiúde por algumas paróquias como por exemplo Mascotelos e Santiago de Candoso. Liturgicamente acompanham os nove dias das “Antífonas do Ó” ou “Missas do Parto”. Neste período do ano surgem grupos informais de tocadores de caixa e bombo que se reúnem para tocar até à igreja, celebrando a Natividade. Em São Martinho de Candoso o costume acabou mais ou menos em 1980. Tudo começava nove dias antes do Natal, a 17 de dezembro, e terminava com o Beijar do Menino, a 25 de dezembro. Diariamente, um tamborileiro, às 5h ou 5h30m, tocava caixa na rua, dando o sinal para as novenas. Além deste, outro tocador, num lugar mais cimeiro, tocava o bombo. Ambos acordavam a população com uma alvorada, sinalizando os fregueses para que se juntassem a eles e, em grupo, à frente dos tambores, se dirigissem à igreja para rezar as ditas novenas ao Menino, às 6h da manhã. A celebração litúrgica só iniciava quando os tambores chegavam ao edifício religioso. Terminada a cerimónia, tocava o sino e, no fim, saíam os tambores novamente com as pessoas até ao local onde o percurso iniciara. À noite repetia-se todo o processo para rezar o terço. Do Natal em diante, cantavam-se os reis com tambores e as tabernas disponibilizavam caixas e bombos para que os homens tocassem e cantassem em grupo. 

“Os Zés Pereiras de Delães em meados do séc. XX”. Foto cedida por Manuel Lima

No ponto mais alto de Riba de Ave, na noite de consoada, depois da meia-noite, os rapazes solteiros, mordomos da festa de São Roque, tocam caixa e bombo até ao raiar do dia. Aqui, a data do santo protetor das pestes tem data peculiar, o 25 de dezembro, diferente de todas as outras localidades, onde se festeja a 16 de agosto. Findo o forrobodó da noite natalícia, os mordomos seguem para a festa por eles organizada: missa e desfile até à capela, oferta de pães-de-ló às mordomas e ramos aos mordomos, atuação da banda local e, durante a tarde, os esperados bonecos pirotécnicos. Nos anos 80 e 90, sob o olhar da multidão, no penedio deste alto, quando se acendiam os bonecos, entre a fumaça, as bichas rabeadeiras e o cheiro a pólvora, tinha lugar o ponto alto da festa: um bizarro festival de apedrejamentos por parte da rapaziada às figuras produzidas pelos fogueteiros. Todos queriam abatê-los com uma pedrada, mesmo que isso custasse umas cabeças rachadas quando falhavam o alvo. 

Em muitas destas celebrações, recorreu-se e recorre-se aos grupos de zés pereiras de Delães para cumprir os rituais festivos, tais como peditórios, procissões e animação de rua. Por exemplo, ainda hoje, são presença imprescindível nas Maçãzinhas, a data de maior importância das Nicolinas, o 6 de dezembro, dia de São Nicolau. Aí tocam o hino em honra deste santo enquanto acompanham os rapazes que, com lanças compridas, oferecem maçãs às raparigas nas varandas. Atualmente, os descendentes do mestre João Lima (1922-1987), um icónico gaiteiro delaense do século XX no Entre-Douro-e-Minho, continuam o legado do seu pai e avô através de dois grupos, “Os Delaenses” e “Os Divertidos”, transmitindo o seu saber musical a familiares e amigos. Estes dois conjuntos, o primeiro do mestre Alberto Lima e o segundo do mestre Manuel Lima, detêm um repertório de relevo no contexto da música popular em Portugal. Ao acrescentarem clarinetes à formação tradicional de gaita-de-fole, caixa e bombo, transformaram-se em charangas de zés pereiras. Estes grupos gaiteiros, tiveram formações análogas no Pinhal Novo, Palmela; em Fragoso, Barcelos; em Ribeirinho, Arcos de Valdevez; em Caminha; e em vários pontos da vizinha Galiza, onde o fenómeno musical é denominado de “murga”. Na nação irmã, tal como cá, já não são abundantes. Cá tendem a desaparecer, restando apenas a formação dos Arcos de Valdevez e as duas de Delães. 

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