[Crónica] Memórias da fauna piscícola de Ambos os Aves (V)

ATUALIDADE Napoleão Ribeiro

LAMPREIA-MARINHA (Petromyzon marinus)

Nas Memórias Paroquiais de 1758 são 23 os párocos de freguesias ribeirinhas do Ave que mencionam a pesca de lampreia. Conforme indicado anteriormente, tanto nas Memórias Paroquiais como noutras fontes, constatamos que este, como outros anádromos, não subia os afluentes deste rio, nomeadamente o Vizela, o Este, o Pele, o Pelhe, o Sanguinhedo, o Febras, o Selho e outras linhas de menor dimensão. Deduzimos que, à época, estas linhas não reuniriam já as condições necessárias ao seu ciclo de vida na água doce, tanto para reprodução como para desenvolvimento larvar. Os habitats próprios para essa reprodução da espécie são leitos fluviais pouco profundos, de cascalho e areia, de oxigenação originada por correntes fracas[1]. Aí, nos fundos, as fêmeas fazem posturas que podem chegar aos 300 000 oócitos, originando larvas que se concentram, sobretudo, em sedimentos arenosos com alguma matéria orgânica.

Em 1758, as referências relativas à lampreia não vão a montante da localidade de São Cláudio do Barco, em Guimarães, a 112m de altitude, no final do troço médio do rio, onde inicia uma orografia mais montanhosa, de caudal mais estreito e galerias ripícolas que cobrem o curso de água. Depreende-se assim, que seria em volta deste território que, à época, a lampreia se reproduzia. Tal não exclui a possibilidade de, anteriormente, esta subir até às zonas de cabeceira do curso de água. Porém, já no século XVIII, a pressão extrativa das populações ribeirinhas impedia essas subidas, dada a montagem de ramadas de estacaria, com redes de pesca, entre as duas margens, “fechando” o rio. Além disso, já havia uma grande quantidade de açudes, construídos para sistemas pré-industriais de moagens, serrações de madeiras, lagares de azeite, pisões de lã, engenhos de linho e regas, onde se montavam nassas para a pesca.

As ditas Memórias não nos indicam números, o que nos barra a interpretação do que seria a visão quantitativa dos párocos, seus redatores. Uns, referem a escassez da espécie e outros, a sua abundância. Considere-se que, numa localidade próxima da foz, uma pescaria generosa seria, substancialmente, diferente da quantia de uma pescaria generosa num local do troço médio do rio, até porque, desde Azurara até São Cláudio do Barco os sistemas que se montavam para pescar lampreia eram numerosos, o que, reduzia, gradualmente, as quantidades pescadas a montante. No troço final do rio, nos atuais concelhos de Vila do Conde, Famalicão (freguesias ocidentais) e Trofa, nas freguesias de Vila do Conde[2], Azurara[3], Junqueira[4], Macieira da Maia[5], Tougues[6], Fornelo[7], Ferreiró[8], Fradelos[9], Ribeirão[10] e São Martinho de Bougado[11], os párocos, de uma forma genérica, não aludem à escassez de lampreia, referindo a migração sazonal da espécie, entre fevereiro e maio, mencionando que, nalguns anos, são numerosas. Inclusive, os padres de Touguinha[12] e Bagunte[13], sem pormenorizar, redigem que a espécie é abundante.

Legenda: Esquema de instalação de nassas (ou boteirões) num açude para pesca da lampreia. Desenho de J. Almeida. Retirado de SILVA, A. A. Baldaque da – “Estado Actual das Pescas em Portugal”.  Lisboa: Imprensa Nacional, 1891. P. 236.

Nas localidades mais a montante, dos atuais concelhos de Santo Tirso, Famalicão (freguesias orientais) e Guimarães, os relatos são diferentes. O pároco de Areias atribui a escassez da espécie à “multiplicidade de caneiras ou levadas com que [o rio] é atravessado e pelas pesqueiras e engenhos que há nele para os pescar[14]. O Abade de Sequeirô relata que “não há notícia de lampreias [e] relhos, como em outro tempo se diz que nelle se pescaram[15]. Os párocos da Lama[16], Aves[17], Romão[18] e Sanfins de Riba de Ave[19] indicam que se pescam “algumas”.  O padre de Bairro[20] é o único que contraria a tendência, relatando que a espécie é abundante. O Abade do Mosteiro de Santo Tirso diz que as lampreias aí surgem somente “em alguns anos” e que “não prestam para o gosto por virem tão tarde[21]. Contudo, ressalve-se que este mosteiro se abastecia com pescado de São João da Foz[22], no Porto, dado que essa paróquia era pertença do seu couto e daí chegariam lampreias mais gordas e saborosas que as do Ave.  

(continua).


[1] COLLARES-PEREIRA, Maria João (coord.); ALVES, Maria Judite; RIBEIRO, Filipe; DOMINGOS, Isabel; ALMEIDA, Pedro Raposo de; COSTA, Luís da; GANTE, Hugo; FILIPE, Ana Filipa; ABOIM, Maria Ana; RODRIGUES, Patrícia Marta; e MAGALHÃES, Maria Filomena – “Guia dos Peixes de Água Doce e Migradores de Portugal Continental”. Porto: Edições Afrontamento, 2021. P. 89.

[2] [ANTT], Memórias Paroquiais, vol. 40, nº 195, p. 1161 a 1186. Código referência PT/TT/MPRQ/40/195.

[3] Idem, vol. 5, nº 85, p. 1077 a 1082. Código referência PT-TT-MPRQ-5-85.

[4] Idem, vol. 18, nº (J) 46, p. 303 a 306. Código referência PT/TT/MPRQ/18/189.

[5] Idem, vol. 22, nº 18, p. 107 a 110. Código referência PT/TT/MPRQ/22/18.

[6] Idem, vol. 37, nº 82, p. 923 a 928. Código referência PT-TT-MPRQ-37-82.

[7] Idem, vol. 16, nº 121, p. 757 a 760. Código referência PT/TT/MPRQ/16/121.

[8] Idem, vol. 15, nº 55, p. 359 a 366. Código referência PT/TT/MPRQ/15/55.

[9] Idem, vol. 16, nº 141, p. 901 a 904. Código referência PT/TT/MPRQ/16/141.

[10] Idem, vol. 32, nº 106, p. 627 a 630. Código referência PT/TT/MPRQ/32/106.

[11] Idem, vol. 7, nº 53, p. 1087 a 1098. Código referência PT/TT/MPRQ/7/53.

[12] Idem, vol. 37, nº 83, p. 929 a 936. Código referência PT-TT-MPRQ-37-83.

[13] Idem, vol. 6, nº 4, p. 17 a 26. Código referência PT/TT/MPRQ/6/4.

[14] Idem, vol. 4, nº 61, p. 335 a 338. Código referência PT/TT/MPRQ/4/61.

[15] Idem, vol. 34, nº 126, pp. 927 a 930. Código referência PT/TT/MPRQ/34/126.

[16] Idem, vol. 19, nº 28, pp. 153 a 156. Código referência PT/TT/MPRQ/19/28.

[17] Idem, vol. 5, nº 56, pp. 879 a 882. Código referência PT/TT/MPRQ/5/56.

[18] Idem, vol. 5, nº 56, pp. 879 a 882. Código referência PT/TT/MPRQ/32/149. Freguesia atualmente integrada na freguesia das Aves.

[19] Idem, vol. 15, nº 86, pp. 531 a 536. Código referência PT/TT/MPRQ/15/86. Freguesia atualmente integrada na freguesia de Bairro.

[20] Idem, vol. 6, nº 6, pp. 33 a 38. Código referência PT/TT/MPRQ/6/6.

[21] Idem, vol. 36, nº 56, pp. 355 a 362. Código referência PT/TT/MPRQ/36/56.

[22] Sobre o assunto consulte-se CORREIA, Francisco Carvalho – “O Mosteiro de Santo Tirso, de 978 a 1588 a silhueta de uma entidade projectada no chão de uma história milenária”. Santo Tirso: Câmara Municipal de Santo Tirso, 2009. v. I. Pp. 500-504.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

seven − 2 =