[Crónica] Memórias da fauna piscícola de ambos os Aves (III)

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro

SOLHO (ACIPENSER STURIO) – continuação

Conforme refere Carlos Almaça em 1990[1], em informações recolhidas junto de pescadores mais antigos do rio Douro, uma das particularidades do solho era o facto de ser um peixe que “parecia que dormia”, dado que estagnava a pouca profundidade, sendo pescado facilmente.  Inclusive, na gíria destes e das suas famílias, ao referirem-se a um sono mais profundo, usavam o termo “dorme como um solho[2]. Tal como todos os peixes ósseos, o solho possui uma bexiga natatória, com interesse para a manufatura de cola-de-peixe[3]. Contudo, é ao nível gastronómico que se destaca, sobretudo, pelo seu sabor e pela sua raridade, o que, ainda hoje inflaciona o seu preço nos países onde se reproduz. Domingos Rodrigues (1637-1719) no seu livro “Arte de Cozinha” [4], de 1680, refere duas fórmulas culinárias de como, em Portugal, se preparava o consumo deste peixe: tanto em escabeche[5] como em empadas, produzidas com as suas postas.

LAMPREIA-MARINHA (Petromyzon marinus)

Outras designações: lampreia

Legenda: Imagem retirada de LA CÉPÈDE, M. le Comte de – “Oeuvres du Comte de Lacépède, comprenant l’histoire naturelle des quadrupèdes ovipares, des serpens, des poissons et des cétacés”. Paris: Chez Abel Ledoux, libraire, 1845.

Caraterísticas: A lampreia-marinha (Petromyzon marinus) é um peixe anádromo, que, no nosso país, hoje, é uma espécie considerada vulnerável[6]. Cresce no mar e sobe os rios para se reproduzir e desovar em ninhos, feitos pelo macho em leitos de fundos cascalhosos e de areia, em locais de águas correntes que produzem oxigenação suficiente necessária à subsistência dos ovos. Após a postura, findo o seu ciclo de vida, morre no local de reprodução. Já a larva que eclode dos ovos, o amocete, é cega e vive enterrada entre 4 a 5 anos nos sedimentos arenosos do rio, onde recolhe alimento filtrando as águas. Depois de passar por uma metamorfose, desce o curso fluvial e segue para o oceano, onde se desenvolve durante 1 a 2 anos, atingindo a maturidade sexual para, depois, voltar ao rio e findar o seu ciclo de vida. Existem exemplares que podem ter 1.20m de comprimento. Alimenta-se fixando os dentes, da sua boca circular, no corpo de outros peixes, parasitando-os, sugando o seu sangue. No nosso país, sobe os rios entre janeiro e junho, atingindo maior número, em fevereiro e março.  

***

            À exceção do solho, hoje extinto em Portugal, a lampreia, devido às qualidades gastronómicas da sua carne, foi e continua a ser, o peixe mais apetecível de rio e, no passado, a bacia hidrográfica do Ave não foi disso exceção. Contudo, a construção de grandes açudes, destinados à produção de energia, perto da sua foz, logo a partir do concelho de Vila do Conde, como é o caso da mini-hídrica de Fornelo, impediram, de forma definitiva, a subida de peixes anádromos, como a lampreia. Além disso, caso ainda entrasse no Ave, a extração de inertes, a sobrepesca ou a poluição seriam, certamente, fatores letais[7] que impediriam o seu desenvolvimento larvar.      

            A pesca à lampreia no Ave está atestada desde que há registos documentais regulares na administração do território portucalense, em especial, a partir do séc. XI. Contudo, certamente que, em períodos anteriores, a sua faina teria já raízes pré-históricas. A arribação, em pleno inverno, de peixes com altos índices de gordura, como a lampreia, o salmão e o sável, bem mais suculentos que os peixes residentes, era um suplemento alimentar sazonal importante, dado o seu elevado valor nutricional[8]. Além disso, a lampreia podia ainda ser conservada viva, durante meses, em tanques e minas de água[9], até ser consumida. Em tempos mais remotos, esta e outras espécies, eram abundantes e acessíveis à maior parte das populações que as consumiam frescas, fumadas, secas ou salgadas[10]. Dado o valor económico da espécie e o facto de o período da sua safra coincidir com os jejuns da Quaresma, tanto a nobreza como o clero, logo nos processos de senhorização das terras pós-Reconquista, fizeram prevalecer os seus interesses nas pescarias dos peixes anádromos, coutando, aforando, arrendando ou taxando os lugares de pesca, que, no caso da lampreia, muitas vezes, eram pagos em espécimes vivos.   

(continua)


[1] ALMAÇA, Carlos – “A lampreia e o esturjão na bacia do Douro”. Observatório, N.º 1. Canelas/ Valadares: Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia,1990. Pp. 377−382.

[2] Idem. P. 381.

[3] Idem. P. 380.

[4] RODRIGUES, Domingos – “Arte de cozinha dividida em quatro partes (…)”. Lisboa: Oficina da Viúva de Lino da Silva Godinho,1821. P. 114.

[5] Ao longo do livro, o autor indica a receita de escabeche do solho como a referência para a conserva de outros peixes como o peixe-agulha, o atum e o salmão.

[6] Sobre o estado desta espécie em Portugal, consulte-se MAGALHÃES MF, AMARAL SD, SOUSA M, ALEXANDRE CM, ALMEIDA PR, ALVES MJ, CORTES R, FARROBO A, FILIPE AF, FRANCO A, JESUS J, OLIVEIRA JM, PEREIRA J, PIRES D, REIS M, RIBEIRO F, ROBALO JI, SÁ F, SANTOS CS, TEIXEIRA A, DOMINGOS I. – “Livro Vermelho dos Peixes Dulciaquícolas e Diádromos de Portugal Continental”. Lisboa: FCiências.ID & ICNF, I.P., 2023. P. 55-56.

[7] Idem, p. 56.

[8] SOEIRO, Teresa – “Pescadores de Terra Adentro”. Revista “Oceanos”. “Os Pescadores”. N.º 47-48 – julho/dezembro 2001. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. P. 137.

[9] Idem, p. 149.

[10] SILVA, Francisco Ribeiro da – “A Pesca e os Pescadores na Rede dos Forais Manuelinos”. Revista “Oceanos”. “Os Pescadores”. N.º 47-48 – julho/dezembro 2001. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001. P.9.

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