[Crónica] Precisamos que seja fogo posto

CRÓNICAS/OPINIÃO Hugo Rajão

Os anos passam, mas o problema mantém-se, aliás agrava-se, devido às alterações climáticas. Sempre que as condições meteorológicas o propiciam, a floresta portuguesa arde de forma quase descontrolada.

Foi assim em Setembro deste ano, como pudemos presenciar.

O fenómeno dos incêndios deixa-nos, por todos os motivos óbvios, transtornados e furiosos. É o normal e o expectável.

Talvez ajude a explicar um automatismo generalizado, bem patente entre a população, que consiste em reduzir a raiz do problema a vícios morais individuais.

Há porventura uma explicação para fazê-lo. Dá-nos uma maior sensação de controlo sobre o que pela sua natureza é dificilmente controlável, como é o caso de um incêndio.

Se o cerne do problema está nos indivíduos A, B ou C que decidiram deliberadamente pegar fogo à mata, tudo se torna facilmente inteligível. Existe alguém, em específico, a quem podemos chamar à responsabilidade, a quem podemos exigir a restituição do dano, alguém sobre quem uma punição ajuda a saciar a nossa frustração e revolta.

Deixa-nos mais descansados sabermos que basta apertar a malha justiceira e tudo acabará solucionado.

Infelizmente, a questão não é tão simples. Não estou, com isto, a descurar a origem das ignições dos incêndios. A mão criminosa existe e tem de ser combatida. Importa discernir eventuais incentivos económicos ao crime florestal e pôr-lhes um termo onde quer que estes prevaleçam.

No entanto, o fogo posto é apenas uma parte, e nem sequer a maior, da equação.

A este respeito até conseguimos reduzir, comparativamente com o passado, o número total de ignições em três quartos. Infelizmente, isso não se reflete em menos danos.

Tudo continua na mesma, na voz dos especialistas, pelo facto de apenas 2% das ignições serem responsáveis por praticamente toda a área que arde.

Assim, mesmo que reduzíssemos as ignições para próximo de zero, que conseguíssemos prender todos os pirómanos e precaver a maioria dos acidentes, o problema provavelmente continuaria a persistir.

Por outras palavras, mais do que nas ignições, no que explica o início do fogo, o problema está no tanque de combustível que é a floresta portuguesa, tal e qual como se encontra, ou seja, no que faz com que o fogo não pare a sua progressão.

Luís Montenegro, no seu discurso, optou por ignorar os factos e colocar a tónica na moral individual, no crime dos incendiários, nos “interesses que sobrevoam”. Com isto satisfaz a expectativa sociológica, descrita acima, mas transpõe a sua responsabilidade política enquanto representante do Estado para os supostos vícios morais dos certos indivíduos, em abstrato. Assim, enquanto faz um discurso popular, o Estado demite-se das suas funções.

Para finalizar, as complexidades para inverter o mau estado da floresta portuguesa são indissociáveis do facto de esta pertencer praticamente na sua totalidade a privados. É muito difícil, pelo menos em Portugal, discutir de forma séria a propriedade privada, sem que o debate resvale para uma encenação caricatural e infantil da guerra fria. Contudo, o debate é incontornável.

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