[Crónica] Foi um sonho acordado… Um adeus à epopeia de Fausto Bordalo Pinheiro

CRÓNICAS/OPINIÃO Napoleão Ribeiro
"(…) Meu amor quando eu morrer,
veste a mais garrida saia…
Se eu vou morrer no mar alto, ó linda!
E eu quero ver-te na praia,
mas afasta-me essas vozes, linda!
Tens medo dos vivos
e dos mortos, decepados,
pelos pés e pelas mãos,
e p'lo pescoço e pelos peitos…
Até ao fio do lombo.
Como te tremem as carnes…
Fernão Mendes!
Arrasta-me à côncava funda
do grande lago da noite,
cruzando as grades de fogo,
entre o Céu e o Inferno.
Até à boca escancarada
esfaimada…
Atrás de mim …
Atrás de mim …  (…)"

Excerto da letra de “Como um sonho acordado” de Fausto.

Fausto deixou-nos no passado dia 1 de julho. O seu nascimento, algures no meio do Atlântico, a bordo de um tal navio “Pátria”, revela, por si só, a predestinação da sua vida: sonhar e cantar sobre as penúrias e glórias das navegações e da portugalidade. Ele próprio, um fruto do império, filho de colonos, passou a infância e juventude em Angola, onde conheceu de perto a Guerra Colonial.  Além de ser um tocador de violão exímio, no seu legado, ressalva-se, sobretudo, a faceta de compositor e letrista que musicou as vicissitudes da história e da historiografia desse mesmo império. Consciente da realidade factual das epopeias náuticas, cantou-as como ninguém, com a clarividência de quem estudou, profundamente, a condição dos que materializaram com os braços os sucessos e insucessos das viagens que, ao longo de cinco séculos, rumaram a outras águas e temperaturas e que se encheram de novos povos, línguas, animais e plantas, além de conquistas e subjugações, de escravos e colonos, de fiascos e negócios extraordinários, de canela e de pimenta, de naufrágios e de escorbuto, de piratas e gente honesta, de vice-reis e de soldados, do imaginário das baleias e dos monstros, do sexo e das violações, dos pactos de guerra e de paz, dos tiros e flechadas e dos paus e pedradas. Tudo condimentado com os cheiros do sangue e do suor dos trópicos.

As músicas de Bordalo Dias, construídas, inúmeras vezes, a ritmos de chula, tocadas com violão, violas de arame, rabecas, flautas, gaita-de-fole e cavaquinhos, misturam a mitologia grega e a epicidade dos cantos de Camões com os relatos trágico-marítimos. Foram uma lufada de ar fresco no panorama musical de um país que ainda possuía (e possui) uma consciência paupérrima sobre as narrativas dos feitos náuticos e coloniais da sua história. Tal facto, deve-se a uma iliteracia sistémica e a manuais de história que, ao longo do tempo, plasmaram, unicamente, conceitos nacionalistas repletos de enaltecimentos revisionistas à grandeza da nação. Era, e ainda é, demasiado barato elogiar as conquistas, esquecendo as suas matrizes predatórias, resumindo-as à banalidade das letras de músicas superficiais (algumas até venceram o Festival da Canção…), a uma data, a um local ou ao nome de um comandante qualquer, sem tentar quantificar ou contextualizar o seu verdadeiro preço. Ainda hoje, desconhecemos, profundamente, muitas das aculturações que os nossos antepassados deixaram pelo mundo, assim como as culturas dos povos que colonizaram. Fazem falta fontes, investigações, conhecimentos e bibliografia sobre estes assuntos. Aliás, neste campo, o pensamento nacionalista e reacionário, anti-intelectualista e anticosmopolita, ainda hoje desconstrói a historiografia mais isenta, relativizando-a e interpretando-a à sua maneira, ignorando factos deveras pertinentes, produzindo um imaginário infantil de proezas heroicas…

Como o próprio Fausto referia, a literatura portuguesa trágico-marítima fascinava-o, muito em especial, a “Peregrinação” de Fernão Mendes Pinto, No primeiro álbum da trilogia “Lusitânia Diáspora”, Fausto deu nova vida a este livro, com o LP “Por Este Rio Acima”, de 1982. A Peregrinação, redigida no século XVI, foi desde logo uma pedra no sapato nas heroicidades da portugalidade, expondo já, nesse tempo, a má conduta moral dos portugueses no Oriente.  Daí que, durante muito tempo, a nossa historiografia tenha relegado Fernão Mendes Pinto à condição de inventor de… falsidades.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

2 × two =