Rita Vian encerrou o festival Sonoridades, no auditório do Centro Cultural de Vila das Aves, com a casa cheia de um público que recitou os seus versos deliberadamente debitados. Artista fala das origens do seu primeiro disco e da escrita enquanto processo contínuo de purga e autodescoberta.
A essência de Rita Vian é a palavra. A certa altura, na canção “Temos Tempo” do disco, “Sensoreal”, ouve-se o verso “é nas palavras que me hidrato” e é fácil perceber que é uma artífice de caneta na mão. Em entrevista ao Entre Margens, minutos antes de subir ao palco para encerrar a 7ª edição do Sonoridades, Rita Vian fala de um processo de purga e autodescoberta, de um discurso direto sobre a vida traduzido em verso que tenta passar cá para fora num embrulho que vive entre o fado e hip-hop.
O título do disco, “Sensoreal”, está propositadamente mal escrito para formar uma aglutinação entre duas expressões que remetem para sentidos diferentes. O “Senso Real”, algo mais terreno e o “sensorial”, algo mais etéreo. O que quiseste expressar através desta dualidade?
Usei o “sensorial” para evocar a música como algo que nos une através do que não sabemos explicar. Por outro lado, o “senso real” tem mais a ver com a minha escrita, com aquilo em que acredito e a realidade em que vivemos. Quis fazer esta brincadeira com o “bom senso” porque é um conceito que não é igual para todos, é mais complexo. No mesmo prédio podemos ter vidas diferentes, famílias diferentes, provenientes de lugares diferentes. Daí esta ideia de “senso real” que existe como espaço onde nos compreendemos um ou outro e estamos abertos a ouvir.
Qual foi o ponto de partida do processo criativo para este disco?
Foi uma viagem com umas amigas para Tomar. Estávamos a ouvir discos novos que tinham saído na altura, era de noite, eu ia sozinha no banco de trás, e lembro-me de dizer para mim própria “tentar sempre, tentar sempre”. Fiquei a repetir aquelas palavras e fui escrevendo, durante aquelas férias praticamente até ao fim e percebi que estava num novo capítulo de escrita.
Os discos, para mim, começam sempre por uma ideia que, por instinto, sinto que vai perdurar. E este disco começou ali, pela última música. Aquelas palavras ficam a ecoar. Este “tentar sempre” é fazer. Vivemos constantemente com a pressão de concluir, concluir, concluir, mas é o processo que nos faz chegar lá.
É um disco que funciona como uma viagem interior de autodescoberta, cheio de pedaços e episódios. Essa faceta esteve logo na sua génese?
O meu objetivo era trabalhar o lado da escrita, algo em que cada vez mais arrisco. Aquilo que faço é escrever, muito. E por ser um disco palavroso, a ideia passava por explorar um tipo de discurso direto sobre a vida, muito típico do hip-hop. E depois, a partir daí, descobrir.
A certa altura dizes “é nas palavras que me hidrato”. Vês a escrita como um bálsamo ou uma dor necessária para alcançar um ponto de equilíbrio?
Acho que é um bálsamo. No outro dia estava a dizer a um amigo que nós, músicos, temos a sorte de nos trabalharmos por dentro. No final de contas, tudo o que fazemos é sobre nós. Acabamos por fazer uma purga de tudo, em palco ou em estúdio. São tudo coisas que vivemos ou sentimentos que não resolvemos e às vezes descobrimos numa música ao falar de uma coisa que estava muito lá atrás escondida. É quase terapêutico.
Uma das tuas características mais evidentes é o teu flow, a forma como te expressas em verso. Como é que tentas construir os versos em escrita para depois os interpretares nas canções?
Não penso muito nisso. Tem a ver com os trejeitos do fado que se prolongam um pouco na forma de cantar de uma palavra para apanhar logo na frase seguinte. Às vezes pode acontecer, um verso mais palavroso, atrasar ou recuperar, mas nem penso muito nisso. É simplesmente a minha maneira de cantar.
Acabaste de referir fado, anteriormente tínhamos falado de hip hop. Como é que vais explorando o teu universo sonoro entre estes dois pontos?
É algo muito natural porque são provavelmente são os dois estilos que mais me cativam a ouvir. Isso depois traduz-se no que faço. Não somos surdos. Vivemos rodeados de influências e o importante é termos consciência dessas influências. Tenho consciência disso, mas depois o que sai é natural, não é pensado.
É notória a relação próxima e íntima que as pessoas têm com tua música. Ficaste de alguma forma surpreendida com o modo como as pessoas se apropriam com as tuas canções e versos?
Fiquei, sim. E até já houve momentos em que as pessoas fazem uma interpretação diferente daquela que eu achava que era óbvia. Isso remete-nos para aquela ideia de que a partir do momento em que lanças as canções, elas deixam de ser tuas. Para mim é muito comovente ver essa relação das pessoas e, aliás, continua a ser cada vez que recebo uma mensagem. É muito bonito porque percebes que há alguém do outro lado a passar por algo que já me aconteceu a mim e tem uma música a ajudar. A música ajuda-nos a expressar o que vivemos. Ser uma arma dessas é algo que me acalenta.
Depois faixas avulsas, EPs, colaborações, este teu primeiro disco foi um desafio diferente em que sentido?
A minha grande ambição, que felizmente consegui concretizar, era poder trabalhar com os músicos que queria. Consegui com o João Gomes, com o Francisco Rebelo, com o Conan Osíris, com o Benji Price, cuja presença ao meu lado foi uma grande ajuda para fazer a junção das minhas ideias e na finalização da produção. Precisava de estar rodeada de pessoas que admiro e dos meus amigos que estão génese disto tudo. E até consegui metê-los num estúdio a fazer coros. Foi um processo mais próximo daquilo que sou, mais real.